Ao criar um blog, ocorreu-me que fazer um breve registo de factos, episódios e formas de pensar da minha infância e adolescência, se revestiria de algum significado para mim e, naturalmente para os meus descendentes. É isso o que vou tentar fazer.
Incursão ao meu passado e breve olhar pelo mundo que me rodeia
Fiz hoje um pacto com o mês de Novembro. Era o fim da tarde. O sol estava a menos de um metro da linha do horizonte que no caso era feita pela fiada das copas dos ciprestes que povoam o recinto que antecede o cemitério da nossa cidade, facto que não tem que conferir nem quero que confira um tom lúgubre ou patético ao meu devaneio. Quando muito um toque de realismo. No céu prevalece ainda o azul que vai ficando mais claro na medida em que vai para poente. Esparsas, pontiagudas e negras nuvens e agora uma ténue franja alaranjada serpenteando sobre a copa das árvores, convertem o pôr-do-sol de hoje um espectáculo que vale a pena.
Coberto o céu pelo negro da noite, só uma réstia de claridade a sobrar para as bandas do Poente, chegou a hora de acender a lareira e com ela viajar por mais algum tempo pelo mundo dos nossos tão escassos mas compensadores deslumbramentos. Sim, porque a lareira é outro cenário enternecedor pelo calor humano que é capaz de potenciar.
Mas não morre com a lareira o meu encantamento desta noite. A lareira o calor e o crepitar do fogo, transportam-me no tempo a um tempo que há-de ser sempre meu, ao convívio de coisas, situações pessoas que, decorridas as décadas, fazem hoje parte do meu ser integral e que sinto enriquecer-me. Claro é Novembro. De repente não estou já na minha lareira, naquela que nesta hora me aquece o corpo e acendeu em mim o rastilho do inqualificável calor que nesta mesma hora me aquece a alma. Esse rastilho acaba de passar e fazer fogo nessa outra lareira que há muito não conhece lume. O fogo e o crepitar que dela me chegam tem sessenta anos e têm o condão de iluminar os meandros de todo esse tempo deixando-me ver com nitidez a nossa velha cozinha da Lomba e tudo o que a integra, coisas e pessoas. A cozinha é enorme, como que uma praça central da casa, para onde tudo converge e aonde quase tudo se realiza. Sobre o fogo ou junto a ele vejo três potes, um enorme, mas cada um com três pernas, nem mais nem menos e, confesso a minha talvez desmedida ignorância, estou ainda hoje para entender porquê as três pernas, exclusivamente três, já que por exemplo quatro garantiriam um maior equilíbrio. Do lado esquerdo há um fogão a lenha, complementar da lareira. Do lado direito temos o inevitável forno do pão, aonde se resolvia a fazedura desse elemento primordial da nossa alimentação, apesar do seu uso implicar coisas penosas como o era a recolha da bosta de boi para barrar a porta do forno durante a cozedura. Óbvio que essa recolha incumbiam-nos a nós, os miúdos (eu e o meu irmão), apesar de, como os grandes sentirmos um calafrio no instante da apanha. Entre a lareira e o forno estou a ver a preguiceira, onde eu às vezes dava comigo a recompor-me do desgaste do dia. Jamais esquecerei aquele fim de tarde, já noite, em que, tinha sete ou oito anos, dei comigo a discorrer sobre a inevitabilidade da morte. Mas não era a minha morte que me preocupava, mas sim a de meus pais. A morte do meu pai, sim, que era o mais velho e por isso tinha que ser ele. Esse sentir atravessou-me as veias e ficou no meu registo lúcido. Senti duas lágrimas humedecerem-me os olhos. Mas isto foi um relâmpago que hoje me enternece. O resto das recordações emerge nesta hora pela positiva.
O tempo desliza a uma velocidade cósmica e inexplicavelmente eu volto a ser a criança que fui. As coisas deixam de acontecer no mundo das recordações para se tornarem presentes desse remoto tempo. Tudo é bom à excepção do rebentamento de uma granada (vi depois que o era), que muito inocentemente faço explodir com uma pedra, ali a um metro da desafiadora peça metálica com um incontido aliciante cheiro a pólvora, algo de muito novo a que infantilmente resolvo não ter medo, enquanto que os meus companheiros se refugiam aqui e além em torno da casa – mentes mais previdentes que a minha. O resultado é uma correria desaustinada estrada fora com todo o desrespeito por sinais, se os houvesse. O meu pai que anda a podar, vai-me apanhar lá longe. Como a noite ainda não chegou ao fim e há fogo ainda na minha lareira da Lomba, eu continuo a aquecer-me a ela. Acabamos já de jantar, na cozinha claro. O grande assunto que o meu pai leu no jornal tem que ver com a guerra que vai pela Europa e se não erro ele falou além de Hitler, de quem fala quase todos os dias com desagrado que só bem mais tarde percebi, acho que falou também num tal General Montgomery. Não sei a que propósito apesar de não ter passado ainda meia hora. Mas também não admira, eu só tenho oito anos! Noutro dia gostei muito porque apesar de não termos electricidade, ninguém na aldeia, em todas as aldeias, a tem, o meu pai trouxe cá para casa um rádio e pô-lo a funcionar por meio da bateria do carro. Não sei como ele arranjou isso, só sei que ouvimos naquela caixa lustrosa e envidraçada além de musica coisas bestiais. Uma coisa de que nunca me hei de esquecer é da chamada de atenção do meu pai: reparem, quem esta a falar é o Fernando Pessa. Está a falar de Londres, da Guerra. Foi aí que eu fiquei a perceber que a Guerra tinha vários sítios.
A Guerra é neste tempo o grande sério assunto de que o meu pai é portador todas as noites. A reacção dos mais da casa, mãe, Emília e nós os miúdos, é de pasmo ou compunção conforme a brutalidade dos confrontos e dos seus líderes. Naturalmente que para mim e meu irmão o drama depressa se converte em diversão, não tardando os vivas à guerra e aos senhores da mesma, indiferentemente. Ontem explodiu a bomba atómica e devem ter morrido muitas e muitas pessoas. Vamos ver se o pai faz a ligação do rádio, mas é muito complicado, se calhar não vai fazer. A gente gostava de ouvir o Fernando Pessa a falar da Guerra. Gosto da noite aqui na aldeia e um dia quando for velho hei-de ter saudades. Para já a nossa aldeia é linda, fica no cimo da montanha voltada para os dois vales, o do Tâmega e o do Ovelha, afluente daquele. À noite. Na ânsia dos oito anos saber o que está para além e para além do mistério que a noite encerra, agrada me olhar em redor das montanhas que nos cercam. Se há luar, a sua luz difusa que um dia hei-de ter como bela e romântica, basta para que descortine a silhueta dos montes e os localize. Se não é tempo de vinda da lua, tudo é um mundo escuro como breu, encarregando-se as estrelas de dar brilho à noite. No fundo do vale sim, é visível uma extensa área iluminada, que corresponde à iluminação da sede do concelho. Uma destas noites quando minha mãe se referia justamente à iluminação da vila lá em baixo, eu perguntei-lhe se quando fossemos de novo morar para Amarante saíamos todas as noites, ela respondeu-me que todas as noites não, mas de vez em quando… Quando está assim noite escura, nós os da minha idade vibramos quando vemos na encosta da outra banda uma pequena luz a deslizar tranquila e ziguezagueante montanha abaixo, ou acima. Evidentemente é um automóvel que vem ou vai para a Lixa. Claro que isto é uma coisa que acontece de vez em quando.
Falar de automóveis é falar de um tema fascinante para mim. É que um automóvel é nesta altura um acontecimento aqui na aldeia e que, quando acontece, justifica a correria desenfreada da miudagem para o largo central, onde é fatal a passagem da desconcertante máquina andante, que não tem ver nem com os carros de bois nem com as miserandas carroças de cavalos. As charretes ou carros de cavalos de qualidade merecem ainda o nosso respeito, mas são já escassos também. Está-se em tempo de mudança, de modo que os fidalgos das charretes, começam já a adquirir o seu carro. É natural pois que o carro do nosso pai seja para nós uma relíquia. O facto de ser o instrumento de trabalho do pai e não um mero objecto de comodidade e afirmação, não lhe retira a condição de automóvel, com todo o fascínio de que se reveste para nós. Ir a Amarante ou regressar de lá de carro é sempre uma experiência compensadora, e em que cada metro de caminho andado sob o trabalhar ronronante do motor encosta acima, é sentido e vivido intensamente. Como um cavalo de estimação acho que o reconheço pelo cheiro dos estofos já gastos, onde quer que nos cruzemos. É reconfortante ao fim do dia, às vezes já tarde, escutar o roncar do motor do nosso carro lá em baixo nas Fontainhas. Além de as probabilidades de ser outro serem reduzidas, também o nosso ouvido não tem dúvidas em identificá-lo. Os meus amigos deste tempo, além do meu irmão com quem às vezes me engalfinho, ou ele comigo, são o Valdemar, o Carlos e o Arnaldo, o outro Carlos, o Sininho, o Armando, o Aventino, que neste tempo já anda na Banda de Amarante a aprender música, o Viriato, o Neca da Teixeira, o Mário e o Eduardo, estes dois que vivem no Porto e só por cá passam as férias e que por isso têm um porte mais afidalgado, que não sei bem se corresponde à verdade ou se é o simples ar do Porto de que são portadores e que cheira a civilização e se insinua em todos os outros, que vivemos na aldeia, e nós, os de cá de casa, o privilégio de uma vez por mês irmos a Amarante fundamentalmente cortar o cabelo. Ir a Amarante é para mim sobretudo ver o trânsito (os automóveis fascinam-me), sentir a azáfama das pessoas. Mas falando ainda de amigos, por este tempo naturalmente movimentam-se na nossa proximidade as miúdas da nossa idade. É por aí que eu pressinto os acordes ainda muito ténues do significado do feminino. Não esquecerei o efeito que teve em mim numa madrugada de comunhão das Sextas-Feiras, a harmonia das vozes das miúdas da nossa idade. Acho que consegui distinguir e privilegiar uma e que fiquei a partir daí um pouco tímido para com ela. Falar da Igreja é falar daquilo que é a educação neste tempo. Não me parece que sejam muito vivas as recordações que guardarei para o futuro deste aspecto da nossa educação. É espiritualmente soturno o clima em que decorrem os ensinamentos da igreja, em que tudo é pecado. Um espírito submisso como o meu aceitava-os como verdades absolutas que nos eram transmitidas por quem tudo sabia. Mas não tinha a marca da alegria a aprendizagem, já que o sentimento de pecado era mais forte. Possivelmente não me vai agradar muito no futuro a imagem que agora me é dada de Deus e de muito do que são as Suas exigências. Tenho muita expectativa em relação ao futuro. Mas ainda a propósito de carros, voltando atrás, uma destas manhãs, suponho que era domingo e por isso dava para esticar na cama até mais tarde, somos acordados pela Emília para virmos à porta da rua ver uma coisa. Aguçados pela curiosidade é num instante que nos pomos na rua, dando com os olhos num espectacular automóvel que é dum colega do meu pai, o Sr. Belchior. É um carro acabado de chegar da América, vermelho da cor do fogo, em contraste com as cores escuras tradicionais. É um grande Ford de linhas muito modernas, pelos vistos fabricado na América já neste ano de 1945. É um deslumbramento dum carro que me há-de ficar na retina pelos tempos fora (sim, os automóveis enlouquecem-me). Pela observação que por esta altura faço da existência de vestígios de um triciclo e de um carro de pedais que com um rolo de madeira no eixo traseiro ainda vai andando, eu concluo que fomos mimados na primeira infância, o que não posso dizer em relação à segunda. Apesar dos sete, oito anos ainda havia lugar para um triciclo novo, ainda o acolheria de bom grado. Mas ele não cai do céu e eu também não tenho coragem para o pedir. Aliás acho que continuarei a ser lorpa até bem mais tarde pela minha incapacidade de pedir. Admito que a outra miudagem de um modo geral se confronta com idêntica dificuldade. É grande o sentido de economia cá em casa, que eu aceito mas não me preocupo em compreender a lógica. Irei compreendê-la com o tempo. Virei a concluir que por este tempo não havia reformas e o rendimento dos campos era escasso e que uma doença lá em casa levaria os olhos da cara. Se calhar virei a arrepender-me mais tarde dos meus escrúpulos nesta matéria. Como noutras coisas acho que, levo as contas, a filosofia económica da casa nesta época demasiado a sério. Por tudo isto eu sou o bom, aquele de quem só se espera o bem. Acho que virei um dia a concluir que não tirei vantagem desse destaque erradamente lisonjeiro. Acaba de acontecer uma coisa importante para a malta mais velha, os que andam pelos 14, 15 anos. O Sr. Chico Ferreira, com oficina de carpintaria ali próximo, acaba de fazer um carro de guias, isto é, uma carro de madeira e rodas de rolamentos, que é conduzido mediante uma tábua transversal que segura o eixo da frente e gira em função de um parafuso que liga a estrutura do carro a esse elemento transversal. Os carros de guias são carros pequenos que eventualmente surgem para orgulho de um ou outro. Acontece que o carro feito pelo Sr. Chico Ferreira é descomunal, transporta meia dúzia de rapazes e destina-se a ser-lhes alugado para uma ida a Amarante, que fica a quatro quilómetros e é sempre a descer. Claro que o complicado é trazê-lo de regresso à aldeia. No sábado passado os fretadores e mais o carro foram por uma ribanceira. Houve alguns arranhões, mas nada de grave. Para mim este senhor carpinteiro é mesmo uma pessoa importante, por ser capaz de fazer coisas maravilhosas, como são os carros de guias e outras coisas. Começaram as férias da Páscoa e por isso fomos convidados lá em casa para pormos o calçado de lado e andar descalços até às aulas, excepto ao Domingo. A primeira sensação é desagradável mas ao fim do primeiro dia estão os pés aclimatados e então como é bom andar descalço! O risco que há é o dos tropeços, sobretudo nas trepes do milho quando corremos pelos campos. O problema da higiene não se põe. À noite lavam-se os pés no tanque – recebemos ordens para isso – e está feito. Hoje não houve aula, porque o professor, Sr. Mota e Costa foi ao Porto de comboio e mais a esposa. Eu fui desafiado para ir a erva, logo pela manhã, pelos da família Mendes, que tem terras pegadas às nossas. O nosso trabalho foi agarrar braçadas da erva cegada pelos mais velhos, que o manejo da foucinha é de responsabilidade, e fazer-mos pequenos montes de que se fazem os molhes. Não sei porquê, mas esta cegada de hoje deu-me um gozo especial, não sei se era por estar uma manhã luminosa de primavera, também o vale do nosso Tâmega estava coberto de um manto espesso de nevoeiro que não deixava ver sinais de Amarante lá em baixo no fundo do vale. Sou catraio mas estas coisas da natureza não me passam despercebidas. Ainda brincamos com os peixes-cabeçudos da levada de água que regou já os nossos campos e agora rega os do Sr. Mendes. Alguém me disse que o formato dos peixes-cabeçudos não é definitivo. Penso que fiquei hoje com a noção de metamorfose. Lá para cima ouvem-se umas vozes cristalinas e com um falsete. Claro, são as miúdas do coral, acho que noto a voz da Célinha. Sinto-me estremecer. Coisa estranha que não sei explicar… Os adultos estão fartos de dias de Primavera e de montes cobertos de rosmaninho. Nós não, parece que é a primeira vez. Anda-me há uns tempos uma ideia na cabeça. Ouvi na escola o Sr. Professor dizer que a terra é redonda e que gira no céu como a lua e o sol, mas isso é uma coisa que me custa a entrar nos miolos. Se a terra é redonda e anda no céu a girar, como é que ela nem mexe? Mas a ser assim e eu acho que o Professor estava convencido do que dizia, há uma ideia que não tardou a vir-me à cabeça e que lá tem estado a amadurecer. No fim da tarde destes dias, estou na varanda da nossa cozinha, antes de irmos jantar. Estou feliz porque estou a sonhar e a sonhar com um sonho em que comecei já a trabalhar com a ajuda do meu irmão e algum companheiro mais. O projecto é simples e tem que ver com a dita informação de que a terra é redonda. Logicamente admiti que se era redonda e se fizéssemos um furo de um lado ele ia ter ao outro. Era tudo uma questão de paciência. Começamos hoje os trabalhos e o buraco já nos dá pela cintura. Por isso hoje para nós é um dia grande. Só vai ser precisa paciência e algum trabalho. Passados oito dias já mal há na nossa cabeça vestígios do projecto trans-terra. Acho que o insucesso foi menos uma questão de reflexão, de lógica, do que de um sentimento, uma espécie de informação ou intuição mais fundo de nós. Assim morre um sonho grande. Há uma coisa que também nos deve ter arrefecido na nossa façanha, foi aquilo que nos disse o Candidinho, que a terra no meio estava cheia de lume e penedos a ferver, de modo que não se podia passar. De facto há coisas no nosso tempo de criança que nós se calhar nunca mais esquecemos. Eu não sei bem se é assim, mas até estou para ver. Mas que é um tempo de que vou ter muito boas lembranças, lá isso é que vou.
Há cerca de quinze dias vínhamos com a nossa mãe de Amarante, Decerto o nosso pai não pôde transportar-nos, de resto era a pé que toda a gente anda. Como sobe bastante caminha-se devagar e também por isso as pessoas conhecidas vão-se encontrando. Desta vez quem veio ao nosso encontro foi o Sr. Questodinho da Quelha que era nosso vizinho e muito amigo, os filhos dele são mais velhos do que nós e já vão à caça. Ora no meio da conversa o Sr. Questodinho ensinou a nossa mãe e claro também a nós uma oração que se calhar não vou esquecer. Só vou dizer o princípio: «Deus vos salve oh pedra d’ Ara que no mar foste criada e na Igreja consagrada…» Só sei que gostei. Já tenho ouvido falar de poetas. Decerto quem fez esta oração era poeta. Esta semana aconteceu-me uma que não lembra ao diabo. Ia eu pela barroca abaixo. A barroca é um estradão para carros de bois que faz de corta-caminho entre a rua (chama-se assim porque é mesmo empedrada) que passa à nossa casa e a estrada principal que atravessa a aldeia. Eu lá ia cabisbaixo barroca abaixo, decerto a falar com os meus botões, quando de repente me sinto esbarrar com qualquer coisa muito estranha. Levanto assustado a cabeça e dou de caras com o burro do moleiro, que mais atrás se ria como um perdido. Eu e o burro olhamos um para o outro, decerto acusando-nos mutuamente, e lá seguimos o nosso caminho.
A Páscoa aproxima-se e o rosmaninho cobre já os montes. Mesmo que eu não soubesse em que época estamos, bastava o cheiro do rosmaninho para me dizer que estamos na Páscoa. Adoro este tempo. Claro, adoro este tempo como adoro o do Natal. No Natal não há rosmaninho para irmos a ele para receber a Cruz, mas há outra coisa fantástica que é ir às pinhas, para depois as assar e comer pinhões. Os rapazes da cidade nem imaginam o gozo que é ir às pinhas. Neste Natal o Zé Ferreira caiu dum pinheiro e foi ter ao hospital. Há dias o nosso criado, o Zé, fez uma nassa, quer dizer, uma espécie de gaiola com que se caçam os pardais e outras avezitas e deu-ma e eu fui pô-la no meio de um campo. Todas as manhãs antes de ir para a escola a tenho ido espreitar a ver se já caçou alguma coisa. Até aqui nada, mas hoje fiquei radiante ao ver-lhe saltitar dentro um pardal. Aproximei-me para não o assustar e com muito cuidado não vá fugir-me tirei o passarito para fora. Segurei-o bem nas mãos, deixei-o estrebuchar e fiquei a observá-lo durante algum tempo, até que se me pôs um problema: e agora que vou fazer? Comê-lo? Não teria coragem de o fazer e decerto lá em casa ninguém se atrevia a cozinhá-lo. Conservei-o mais uns instantes nas mãos e depois, acho que por algum instinto, comecei a facilitar-lhe a vida, a dar-lhe mais e mais rédeas nas minhas mãos até que, aproveitando aquilo que entendeu ser uma oportunidade, se me esgueira por entre os dedos. Eu acho que respirei fundo. Eu há bocado falei no Natal mas não disse nada para além das pinhas. Mas eu gosto tanto do Natal! É as coisas que se come no Natal, as guloseimas (rabanadas, aletria, filhoses e bolinhos de jeremú) e acima de tudo as prendas do Menino Jesus, que as traz pela chaminé e as põe no sapatinho. É uma prenda e às vezes, decerto quando o Menino tem mais possibilidades, duas. Mas nunca mais de duas e é fantástico. Regra geral está frio e às vezes mesmo neve, mas tudo isso é bom. Quando chove é mais chato. Noutro dia fui com a minha mãe a casa da René é uma moça francesa, filha de mãe francesa e o pai era daqui. Há duas coisas que me surpreenderam: um comboio de corda que a René me mostra, a que dá corda e põe a andar e me fez crescer água na boca e, quando estávamos para sair a minha mãe fez à senhora um convite que me desconcertou: pediu-lhe para tocar violino que era para eu ouvir. A senhora foi buscar um violino e tocou mesmo. Quando vínhamos embora é que a minha mãe me disse que a dona Louise tinha sido actriz em Paris. Gostei de a ouvir, mas o comboio amarelo da René trouxe-o nos olhos. Mas nem tudo são rosas neste tempo. O ano passado, quando andava na primeira classe tive dois azares, além da história da granada que fiz explodir e que foi ainda há pouco tempo. Estive para morrer com uma pancada que apanhei no nariz. Soltou-se-me o sangue e era como uma fonte em bica. Não havia maneira de estancar, nem com uma cruz que me fizeram nas costas. Num desespero e porque não havia na aldeia qualquer tipo de transporte e o meu pai não estava e a única bicicleta do lugar estava para o trabalho e não havia nem há telefone nem ninguém pensa em tal luxo, a nossa empregada, a Emília mete pés a caminho estrada a baixo, para chamar o médico da vila. O Dr. Brandão diz-lhe que não pode porque tem de ir a outro lado e ela rogou-lhe uma praga. Espero bem que ela, a praga, não tenha funcionado. Depois foi ao Dr. Coelho, que atendeu o pedido. Claro que quando ele chegasse eu só podia estar vivo ou morto. Por acaso estava vivo. Ainda estou a ver o doutor e estou-lhe grato. Mas para a Emília a minha gratidão não tem medida. Ela esteve oito dias de cama.
Depois das férias do Natal a situação foi outra. Tinham recomeçado as aulas e o Sr. Professor resolveu ensinar as horas, pelo que nos foi chamando para junto da secretária em grupos. Eu lá fui no meu grupo, lá estávamos num magote atentos à explicação do Mestre, até que de repente e sem perceber porquê, apanho uma monumental bofetada do professor que me deixou adormecida a cara. Não me foi dada qualquer explicação, eu não percebi nada e continuo a não perceber. Acho que o tempo vai passar e eu a interrogar-me sobre qual terá sido o meu delito. Quando as férias grandes deste ano se aproximavam, soubemos lá em casa que o Dr. Artur e a D. Margarida, que vivem no Porto mas são naturais de Amarante e amigos dos nossos pais, vinham passar um mês aqui à Lomba, ficando os velhotes de lhes arranjar uma casa. Foi um tempo maravilhoso para nós. Eram pessoas muito bem dispostas apesar de ele ser advogado. Íamos com eles para todo o lado, claro que a pé, que o Sr. Doutor nesse tempo ainda não tinha carro. Ele tinha uma coisa muito importante que era uma máquina de tirar retratos e que leva sempre consigo. Foi ele que nos ensinou a fazer aviões e barcos de papel. No ano seguinte já trouxeram uma menina, a Leninha, que entretanto tinha nascido. Uma noite depois de jantarem em nossa casa o Dr. Artur disse que a Leninha tinha sido feita na cama da nossa casa onde às vezes dormiam. Eu e o meu irmão ficamos a olhar um para o outro sem perceber lá muito bem o que ele queria dizer.
A matança do porco foi um acontecimento. A chacina foi muito cedo e nós acordamos aos guinchos do pobre porco. Quando chegamos ao terreiro da casa já o animal estava morto. Era uma azáfama à sua volta e estavam ali muitas pessoas entre vizinhos e parentes. Depois o porco foi pendurado e esventrado. Ao olhar para o bicho com as carnes e as tripas ao dependuro, em contraste com a força e compostura ainda da véspera, senti uma certa náusea. E agora nós vamos comer tudo aquilo, e até vai ser bom. Nesta altura perguntei-me se os homens têm o direito de fazer isto a um animal. Este meu pensamento agudiza-se quando penso na ninhada de porcos pequeninos, um espectáculo, quando a porca deu à luz. Não me parece justo. Durante um longo tempo em que o meu pai não tem carro, nem por isso deixa de, pelo menos umas duas vezes na semana, ir lá abaixo à vila, claro que a pé. Janta mais cedo, mete pés a caminho e regressa bem depois da meia-noite. Vai dar asas ao seu vício, dar uma tacada de bilhar ou jogar uma suecada no Café do Pedro. Nos cerca de três quilómetros que separam a aldeia da entrada da vila, não existem próximas da estrada mais do que umas quatro casas, o resto é pinhal cerrado. Mas o meu pai não tem medo, estou a vê-lo de punhos cerrados e passo ligeiro estrada acima. Tudo corre sem problemas até que uma noite, no regresso e ali pelo meio do caminho, nota um discreto barulho na berma. Endireita-se, não altera o ritmo, Passado um instante sente passos de alguém que se aproxima e se coloca a seu lado. Cerra mais os punhos como quem se prepara para o que der e vier. Mas uns instantes e a criatura deixa-se ficar para traz. O meu pai naturalmente respirou fundo e ficou a interrogar-se porque é que o homem desistiu. Tê-lo-á reconhecido e tido alguma consideração?... Estas coisas são raro acontecer. Mas lembro-me de há uns tempos acontecer uma situação parecida mas mais complicada com o Sr. Manuel de Trofei. Também já tarde da noite, quando caminhava na mesma estrada, foi atacado com um facão e atirado para a borda da estrada. Ele fez-se morto e o atacante seguiu o seu caminho. Aconteceu que a facada que lhe deram atingiu-lhe exactamente a carteira, não o tendo molestado em nada. O que não chegou a perceber-se foi a intenção do assaltante, já que seguiu o seu caminho sem nenhuma tentativa de roubo. Hoje aconteceu-me uma coisa muito chata. Comecei há uns quinze dias a usar óculos com os vidros muito grossos. Chamam-me caixa de óculos e dizem que sou dos ricos por usar óculos, o que me chateia. Mas esta manhã aconteceu o pior quando ia para a escola. A certa altura eu ia numa de malabarismo a seguir a marca de um rodado de carro de bois. Claro que o caminho não é liso e por isso o rodado passa às vezes por desníveis e por penedos. Ora nos meus cuidados perfeccionistas de seguir com rigor o rodado, de repente estatelo-me no chão e vou mesmo com a cara à terra. O certo é que para meu pesadelo uma lente fica estalada a meio. Fico pior que estragado, caem-me lágrimas dos olhos e a minha resolução é voltar para trás, dar contas em casa, decerto ao meu pai que já deve estar. Com a mãe a coisa era mais simples, com o meu pai a coisa é mais séria. Imprime-me mais respeito, apesar de me não lembrar de ele me ter batido. Quando cheguei à sua beira informei-o do sucedido e contornando um pouco a verdade e, para minha paz, disse-me: bem, vai lá para a escola. Vai assim, depois vê-se. Acho que vou ficar grato ao meu pai pela sua benevolência. Passados quinze dias e com a experiência que já tenho dos óculos, acho que percebo o trambolhão. É que quando rodo a cabeça tudo se desloca. Já me disseram que com o tempo isto passa. Hoje fui plantar uma árvore no nosso quintal, uma cerejeira. Era uma coisa que me andava na cabeça, mas de que só me lembrava em horas impróprias. Hoje finalmente enterrei um caroço de cerejeira, justamente junto de uma velha árvore dessa raça, acho que para receber desta as boas influências. Agrada-me olhar as árvores grandes e frondosas de modo que tornar-me plantador duma tem para mim importância. Às vezes vamos com o Valdemar e o pai dele ver o futebol ao Salvador. São para aí três quilómetros e por vezes há pancadaria. Há tempos veio lá jogar o Vila Meã que perdeu e por azar a camioneta dos jogadores, que claro era a única, avariou. Teve que vir de empurrão do Salvador até à Lomba, que é plano. A partir daí é a descer. Espero que até à vila ela tenha pegado. Como eles perderam, a nossa mãe teve pena deles. Ela fica sempre com pena dos que perdem.
Nós viemos morar para a Lomba porque o meu pai estava saturado do modo de vida e por isso resolveu regressar à vida do campo. Foi assim que em 1942 viemos para aqui morar. Mas aconteceu que passados uns dois anos estava mas é o meu pai cansado da vida campestre, ou decerto com saudades da vida errante e mais agitada do Taxista. Aqui havia dois problemas para resolver: o primeiro era conseguir uma nova licença para carro de aluguer e depois conseguir que os inquilinos da nossa casa de Amarante a deixassem.
Por este tempo vive-se na família um clima de ansiedade, todos desejam muito regressar à vila. Penso que esse entusiasmo nos foi transmitido a nós, as crianças. Que estávamos já habituados à aldeia. Acho que as coisas correram bem. Não tardou que o meu pai obtivesse a nova licença e comprasse novo carro. Agora é o desejo de regressar a Amarante. Estou a sentir a ansiedade de todos. É só mais algum tempo e uma noite que nenhum de nós esquece, entra o meu pai em casa a chocalhar com as chaves da casa de Amarante. É uma alegria que nem dá para descrever. No dia do regresso nós viemos na camioneta empoleirados na mobília. Uma viagem inesquecível.
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Numa vertigem, implacável, passou o tempo. Deixou marcas, fundas marcas, irreverente que ele passou. Conteve-me o ímpeto e branqueou-me os cabelos. Do alto da pirâmide do tempo – é-me lisonjeiro falar assim – vejo ao longe as situações, as coisas, os acontecimentos e estados de alma, em que eu próprio participei ou de que fui mera testemunha. Estamos em Novembro do ano de 1946.
Foi agitada esta primeira noite após o regresso à nossa casa de Amarante. Esta manhã, de madrugada, não é o chilrear dos pássaros nem o ranger dum carro de bois que nos acorda. O que nos arranca do intranquilo sono é um excitante barulho de motor que nos diz de alguma maneira que estamos naquilo que os grandes dizem ser o mundo civilizado. A curiosidade faz-nos saltar da cama e espreitar da janela a ver o que se passa. É ainda noite como breu, as luzes acesas, e na frente da nossa casa, do outro lado da rua, está estacionada uma camioneta de passageiros. A camioneta é uma espécie de miragem ali na nossa frente. Passado um pouco sai dela um homem que deve ser o chauffer e então concluímos que o trabalhar de motor é mesmo da camioneta. O meu irmão, decerto mais esperto do que eu ou, por ser mais novato e não se deixar inflamar por coisas menores, não tarda a voltar para a cama. Mas eu, enfeitiçado por aquela enorme máquina de transportar pessoas e para mais com o «coração» a trabalhar, deixo-me ficar, a ver no que dão as coisas. Se calhar a camioneta vai andar cheia de gente e vai ser bom de ver. Isso veio a acontecer passada uma boa meia hora, mas valeu a pena, apesar de as pessoas não serem muitas. Finalmente o chauffer, de boné na cabeça, volta a entrar para a camioneta. Ela lá arrancou devagarinho e eu senti inveja do chauffer. Vim a saber mais tarde que o motor tinha que ser posto a trabalhar, para aquecer. Durante muitos dias fiquei a acordar com o motor da camioneta, que dormia ali todas as noites. Visto da lonjura do tempo, aquele trabalhar de um potente motor de camioneta, a mim que vinha do convívio dos animais e de toda a casta de arvoredo - a vinda à vila era coisa esporádica - , dava-me um gozo que não dá para descrever. Passados alguns dias outra situação bem diferente mas igualmente empolgante me arrancou de madrugada para a nossa janela. Eu já estava acordado pelo motor da nossa camioneta, que me era já familiar, mas foram outros os sons que me invadiram a alma. Era a Banda de Música da nossa vila que fazia a arruada do 1º de Dezembro. Nem ouso descrever o meu apreço por esta musical arruada, mas sou capaz de entender o que ia no espírito daquele punhado de homens que caminhavam na frente da Banda, enfiados nos seus sobretudos e de chapéu enfiado até aos olhos, não que a madrugada é já de Dezembro. A escola primária é a de S. Pedro, na rua da Cadeia. Ando na terceira classe e o professor é o Sr. Vieira e uma das primeiras coisas que soube era que o Ferreira, nosso colega, tinha dado setenta erros num ditado. Pareceu-me impossível, mas lá fui aceitando a ideia. O mesmo professor Sr. Vieira continuou depois para a quarta classe. Era uma pessoa exigente, normalmente estava de cana na mão, uma cana fina e com uns tantos nozes. Acontecia que de vez em quando era na minha cabeça que eles batiam. Depois do ditado era o intervalo (isto na quarta classe), mas de que não travamos melhor partido, porque era o tempo de correcção dos exercícios e os bolos eram em função dos erros. Ainda sinto algum amargo de boca desse segundo tempo da tarde, que era o tempo do julgamento e da sentença. Mas era boa pessoa esse professor apesar de uns tantos bolos ou batidas de cana. Falava connosco como um amigo e contava-nos histórias da sua vida de caçador. Quando faltava, era sabido que tinha ido à caça. Não me esqueço daquela passeata que todos os professores davam num dos intervalos, num vaivém no terreiro da escola, todos de mãos atrás das costas, num ritual que me ficou gravado, mas a falar-me de uma dignidade e disciplina que se às vezes eram exageradas, me parece que estão a fazer falta nos dias de hoje. Como é difícil agarrar-se o equilíbrio para as coisas! Mas para falar verdade uma das lembranças que tenho mais viva desse tempo de escola, é o cheiro nauseabundo das latrinas. Havia que aguentar. Desse tempo de escola lembro-me com alguma frequência de um colega, o Adolfo, que chamava a nossa particular atenção. Era totalmente paralítico e era a mãe que o trazia ao colo para a escola. É certo que de longe a longe eu vou perguntando aqui e além pelo Adolfo, pelo que é a sua vida. Mas tenho um certo remorso de nunca ter tomado a iniciativa de ir ao seu encontro. Sinto hoje isso como uma perda de oportunidade em relação às coisas ou atitudes que realmente nos enriquecem.
Nessa época íamos cortar o cabelo à Barbearia Vasconcelos de que o meu pai era amigo e cliente. Quem nos cortava normalmente o cabelo era o Sr. Joaquim barbeiro, que punha um pequeno banco em cima da cadeira para dar altura. Se propriamente cortar o cabelo não era muito agradável pela disciplina que nos era exigida e que incluía uns abanões na cabeça para a colocar ao jeito do corte, eu adorava ouvir as conversas dos grandes, muitas vezes senhores importantes da terra, que falavam de coisas muito sérias que iam pelo mundo, acho que ainda o rescaldo da guerra. Havia um assunto que estava muito na berra e que às vezes me deixava meio assustado, e que era os chamados discos voadores (isto acontece entre 1947 e 1948). Houve uma altura em que se não falava noutra coisa. Eu acho que nesse tempo as barbearias eram sítios espectaculares para se conversar.
Estou a ver-me numa fotografia de grupo, lá pelo primeiro ano do liceu. Enternece-me olhar para mim nessa época, dentro de um sobretudo cinzento de que o tamanho das mangas não deixava ver as mãos, não que teria de continuar a ser sobretudo meu para o ano que vem. Investido de uns óculos desmesuradamente graduados, tinha dificuldade em ver o mundo, que apesar de tudo se me anunciava fantástico e às vezes vislumbrava em sonho. Há coisas fabulosas de que me lembro desse tempo, quero dizer, coisas que me eram importantes. Como a fotografia de que falo. Foi tirada no Colégio. Ocorre-me dessa época o bom e o menos bom, mas mesmo o menos bom, como sejam os cachaços do Padre Ramalho, parece que o tempo os espiritualizou. Guardo de resto uma muito cara imagem deste professor, que aliás era o Director do Colégio. Por ser uma Instituição diocesana, parte dos professores eram padres, algumas freiras e algumas professoras licenciadas da vida civil. Para além da referência àquele distinto professor, prefiro não destacar nenhum outro, para não menosprezar quem quer que seja por ser francamente positiva a memória que guardo do corpo docente da época. Mas há coisas que não podem ser omitidas como seja a polivalência de alguns dos nossos professores. Acontece que o reverendo Padre Ramalho era simultaneamente nosso professor de matemática e de Inglês. Os cachaços aconteciam na matemática, que no inglês posso dizer que era bom e como tal tratado. Vista a coisa à distância dos cinquenta anos, tenho a ilusão de que era encarado como se de duas pessoas distintas se tratasse, dum lado o aluno fraco de matemática, merecedor de eventuais ou frequentes abanões, e do outro o bom aluno de inglês merecedor de referências lisonjeiras, que também aconteciam. Acho que os meus potentes óculos eram para mim um travão, fonte de uma timidez que me perseguiria pela vida fora a dificultar-me os passos. Não me agradava muito figurar no quadro de honra, por sugerir um bom comportamento que reconhecia autêntico, mas lá no fundo colidia de alguma maneira com a minha sensibilidade. Vestígios de uma educação extremada, onde imperavam o medo e uma então crónica subserviência. É por esta época que as coisas do amor começam a tomar forma na minha cabeça. Aos poucos começo a sentir-me deslumbrado com os atributos de uma colega. Era alta e morena. Bem mais alta do que eu, absolutamente impensável arrancar de mim coragem para a abordar, falar-lhe dos meus sentimentos de forma telegráfica que fosse. Não tenho palavras para dizer o que senti no dia em que a professora resolve castigar-me, por motivo que se me varreu, e o castigo foi mudar-me de lugar. Ora mandou-me justamente para junto da Maria Isabel… A professora nem imaginou o “castigo” que me deu. Hei-de ficar-lhe grato para o resto da vida. Como já disse algum dia algures, há instantes que são eternidades e são escassos na vida das pessoas. Esse terá sido para mim o primeiro instante eternidade. Há quem se refira com sarcasmo aos amorosos sentires da adolescência. Por mim acho-os respeitáveis e preciosos. Lá estão longe a estribar a nossa estrutura afectiva. Ainda relacionados com o tempo de colégio, há cenas ou situações que não são para esquecer. Por exemplo tínhamos um professor -cujo nome não é preciso revelar que ali pela Primavera, quando o tempo «amornaçava», tinha o hábito de se recostar na cadeira e inclinar a cabeça para trás. Era aula de português. A dada altura mandava um ler, depois mandava outro continuar, até que alguém se apercebia de que a leitura já ia longa. Ao darmos por um estremeção do professor era óbvio que o distinto mestre tinha passado pelas brasas. Esta alusão sugere-me uma outra, ainda que de pendor bem diferente. Trata-se também de aulas de português mas agora da regência do Reverendo Padre Cerqueira e é com verdadeiro apreço que me refiro à situação, e falo assim por se tratar de uma característica da personalidade desse professor. Não podia ficar indiferente à elevação que ele dava à leitura de textos de conteúdo sentimental. A dignidade emocional que ele colocava na leitura não podia passar despercebida ao aluno atento. À distância de 50 anos presto-lhe a minha homenagem pela imagem elevada que me deu do amor humano, que naturalmente não passa, ou não deverá passar à margem da sensibilidade de um homem por que é sacerdote. Obrigado pelo punhado de humanidade que por certo semeou no espírito adolescente dos seus alunos. Há outra sensibilidade que devo a este professor e que reside no encantamento que toma conta de mim quando me confronto com a grandeza da Catedral de Compostela. Ficou-me na memória a descrição pormenorizada e vivida de uma visita que esse professor fizera àquela Catedral. Enfim, coisas importantes que ficaram no meu registo.
Estou a ver-me num pequeno grupo em que alguém levantou o problema de o Colégio estar a ser frequentado já por mais de 200 alunos e alguém acrescentando com o cenho pesado e o abanar cerimonioso da cabeça, que «qualquer dia não havia quem fizesse as terras».
Amanhã vou com o meu pai a Monção. Ele vai lá levar uns clientes e como há lugar para mim, desafiou-me a ir, pois sabe que eu dou muito apreço ao passeio. Vou satisfazer a grande curiosidade de ver a Espanha do lado de cá. (…) Partimos ainda de noite, de modo que chegamos lá antes do meio-dia. Passamos por cidades bestiais como Guimarães e Braga, que eu ainda não conhecia. Foi bom conhecer Monção, recordar o gesto guerreiro da Deu-la-deu mas, quanto a Espanha vista do jardim de Monção, foi um tanto decepcionante. Eram campos onde andavam pessoas a trabalhar, floresta e uma ou outra casa ao longe. Afinal tudo como da banda de cá. Mas nem por isso esmoreceu o meu encantamento nascente pelo país vizinho. Eu pressentia que para além daquilo que os meus olhos estavam a ver, havia outra Espanha que eu um dia havia de admirar. O meu pai deve ter-se apercebido da minha falta de entusiasmo. Almoçamos já no regresso em Arcos de Valdevez, numa pensão. Achei curioso que as pessoas bebiam o vinho por tigelas. E claro, nós também bebemos.
Por muito que por este tempo me agradassem os jogos sazonais, como a esfera e o pião, não deixava de sentir uma certa dor de cotovelo pelos que praticavam jogos mais responsáveis, era o caso do voleibol que para além do mais tinha certa visibilidade para o elemento feminino do colégio. Sempre os olhos e os brutos óculos a estorvarem os movimentos.
Recordo com emoção a Amarante da minha adolescência. É a terra em si, os seus recantos, as suas pedras, a paisagem em que a natureza foi esbanjadora, era a própria gente da minha terra que por detrás de todo este tempo continuo de alguma maneira a idolatrar. E de tal maneira que não me vou furtar, nesta divagação pelo meu passado distante, a mencionar alguns nomes representativos desse mundo humano com que diariamente me cruzava. Como poderia deixar de referir-me a essa figura lendária que era o Poeta de Pascoais, como carinhosamente era conhecido e tratado por todos. Estou a vê-lo com alguma frequência nas ruas da vila ou no Café de S. Gonçalo, numa pequena Tertúlia. Poderá a memória atraiçoar-me, mas se não atraiçoa, ele surgia sempre vestido de preto, franzino, como que a imagem de um franciscano, este é o registo que guardo. Mas a mais rica recordação que tenho de Teixeira de Pascoais tem um carácter bem mais pessoal. Acontece que com frequência ia a Gatão a uma propriedade nossa. Às vezes, por incumbência do meu pai lá ia eu a Gatão, naturalmente a pé. Nessa caminhada eu passava junto do estabelecimento do Compadre do Poeta, aonde ele com frequência se deslocava (a casa de Pascoais ficava ali próxima). Por mais do que uma vez então me cruzei ali com o autor de S. Paulo. Ao passar à sua beira, levava respeitosamente a mão à boina que então usava, e a que o Poeta correspondia com um visível aceno, que me deixava ufano. Recordar Pascoais é também recordar um processo que um dia no Tribunal de Guimarães me veio acidentalmente à mão: justamente um processo de acidente de viação em que interveio, Teixeira de Pascoais. Segundo o relato da GNR, em determinado dia do ano de l927, quando Pascoais ia ao volante de um automóvel na estrada de Felgueiras para Vizela, a dada altura chocou com um outro automóvel que vinha em sentido contrário. Não sei de quem foi a culpa, tendo até a ideia de que tal não estaria apurado no processo. O que acho interessante é o acidente, num tempo em que para além daqueles dois carros que se atraíram, é natural que nenhum outro automóvel transitasse àquela hora naquela mesma estrada. Outra coisa que me surpreendeu nesse relato policial foi constatar que algum dia o nosso querido Poeta -conduzisse automóvel. Nunca o vi por perto de um carro, já que nesse tempo nós os mais jovens tínhamos o controlo de todos os que na terra guiavam, e digo aqueles por me não constar que por esse tempo, para além da preceptora de Tardinhade, mulher alguma conduzisse lá na terra. No que respeita a Pascoais tanto quanto penso é que na sua cabeça não restaria espaço para preocupações de condução automóvel. Pensando no seu S. Paulo, que foi uma leitura que me empolgou, ocorre-me o Saudosismo que tomou conta de si e de que fez escola e apetece-me perguntar se, ao cruzar-me com este Mestre em Gatão, não terei inalado do seu espírito, não o génio, mas uma réstia da sensibilidade saudosista que com tanta frequência me envolve. Ou serão fragrâncias do Tâmega, ou do Marão, ou das simples pedras da minha, nossa terra?!... Tive a honra de ir ao seu funeral, acho que por volta de 1952.
Nesse tempo jogávamos a bola (bola de trapos) no meio do Largo de Santa Luzia. Havia o risco de a Guarda nos incomodar ou mesmo o varredor, que aproveitava para pôr em realce uma autoridade que decerto nem lhe dizia respeito. Uma vez pôs-nos a contar as cascas de laranja que um atirara para o chão. Contou-as e não eram poucas, informando-nos de que os nossos pais iam pagar o nosso abuso na base de uma coroa por casca. Claro que era dinheiro e por isso um sentimento de desconforto ficou a mexer na nossa consciência. Obvio que no dia seguinte ninguém se lembrava do episódio. Ainda a propósito do jogo da bola na rua, havia outro problema que eram os carros, só que nem chegava a ser problema já que carro era coisa que só passava de vez em quando e, de escape aberto, fazia-se anunciar à distância. Por este tempo, coisas simples nos enchiam e empolgavam os dias, como eram as engenhosas motos de madeira e os chamados carros de guias. Estou a ver uma moto que comprei a um rapaz da rua da Cadeia por sete mil e quinhentos, isto é, sete escudos e cinquenta centavos, equivalente a alguns 10 Euros actuais. Para não esquecer é a ida à quinta dos nossos vizinhos Barros buscar um cesto de laranjas. A quinta ficava lá no alto de S. Veríssimo e o meio de transporte era um carro de guias. Cheio o cesto e colocado no meio do carro, o mais velho de nós toma as rédeas da condução do carro, dois amanhamo-nos no resto do espaço que sobejava e há um que se põe de escacha perna em cima do cesto das laranjas. Destravado o carro e ganhando velocidade na acentuada descida, na primeira curva e por via da fatal força centrífuga, o cesto das laranjas é projectado para fora do carro e com ele o amigo que vinha encarrapitado no cesto e, por arrasto, todos os que vínhamos no carro, inclusivamente o condutor que não conseguiu unhas para o dominar. Acho que é mais ou menos por esta época, nos meus catorze anos que, no decorrer de uma brincadeira com estes carros eu tomo consciência de que o meu tempo de brincar está acabado. Acho que me recordo com rigor da tarde e do sítio e circunstâncias em que senti dentro de mim a decisão de que estava terminado para mim o tempo de ser criança. Acho que senti então uma ponta de angústia, algum sentimento de responsabilidade em relação à vida de adulto que me esperava. Outros interesses de resto tomavam forma na minha intimidade que se não compadeciam com brincadeiras deste tipo. É por este tempo que as coisas do amor tomam conta da minha sensibilidade e me fazem sonhar. Desta feita outra mulher toma vulto nos meus pensamentos, não já, naturalmente, na candura do primeiro ano do liceu. Era também alta e morena e uma vez mais a minha timidez não me facilitou as coisas. Foi um longo e doce-amargo sonho. É sim verdade que o adolescente sofre. Sou disso testemunha… É certo que por essa época outras portas se entreabriam, só que não eram bem as minhas portas. Complicado que eu era e decerto nunca deixei de ser. É também por este tempo que a leitura me absorve um tanto, passando a frequentar a Biblioteca da terra onde me familiarizei com os trabalhos desse outro conterrâneo de vulto, Amadeu de Sousa Cardoso, que emolduravam a sala de leitura. Tenho ainda na retina esses quadros que acho que ainda hoje reconheceria no fim do mundo. Não com certeza pelo arrebatamento que provocavam naquilo que pudesse ser a minha sensibilidade artística, mas pelo familiares que se tornaram. Aliás aqueles que representam figuras humanas, como um homem esquelético que toca violino e aquele cavalheiro de gravata e óculos dentro de um casaco encorpado a dar-lhe alguma imponência, pelo seu silêncio de todos os dias, por nunca me dirigirem a palavra e o silêncio daquele violino me ferir ainda hoje os ouvidos. Um estado de espírito que continuo a reconhecer quando visito um Museu ou local de exposições. A propósito deste Mestre da pintura nosso conterrâneo, ainda tive oportunidade de conhecer um seu irmão da casa de Manhufe, que com frequência vinha à vila num Nash da época. Acho que era um coupê verde. A propósito de carros, é ainda por esta altura que se aguça em mim a sede de conduzir carro. Quando vou com o meu pai à aldeia, ele por vezes manda-me pegar no volante e isso dá-me um gozo que ele nem imagina, mas de qualquer modo longe da que me daria a condução total do carro. Conduzir é um desejo extraordinário em mim, só que o meu pai não se mostra muito disponível para isso. Às vezes acontece de na estrada de Gatão cruzarmos com o carro do Dr. Falcão, e então lá vai o meu colega Quim Augusto a conduzir o carro. Quase que tenho inveja dele. O meu pai nem imagina o que então se passa comigo, se soubesse acho que me dava umas lições e me deixava guiar de vez em quando. Enfim… Esquecido do tempo que passou em reboadas, num relance vejo-me no para mim, e por boas razões, mítico Largo de S. Gonçalo. Vejo cenários, situações, pessoas, sobretudo isso, pessoas, gente, a gente da minha adolescência, que eu conheço e por quem sinto um bem-querer. Além, junto ao Café do Pedro vem o homem dos jornais, o Sr. Mendes, de boina à espanhola o tronco inclinado para o lado contrário aos periódicos, para um melhor equilíbrio de forças. Como sempre, imbuído da responsabilidade de quem vem trazer às pessoas algo de importante, que são as notícias do mundo. O sentimento que tinha da sua responsabilidade era tamanho que nós, os novatos, nem sempre éramos bem sucedidos na compra do jornal. Ele media-nos como a aquilatar do nosso mérito para manusear um jornal. O Sr. Belchior sai do Café Bar apressado, que não tem tempo a perder e arranca no seu Ford vermelho no sentido da ponte, que a D. Maria fica com os cuidados, que não são poucos, do funcionamento do Café.
Esbanja simpatia por todos. Além o Sr. Branco, de respeitáveis barbas a ficarem grisalhas, atravessa a rua para o Café do Pedro e de cuja gestão a Rosinha se incumbe com eficiência. O Sr. Monteiro lá está no seu quiosque aviando os clientes. Com o cotovelo apoiado no pequeno balcão e dando duas puxas no cachimbo, está o Luís de Roçadas (meu pai) enquanto espera eventual freguês. Junto à porta do Mosteiro está o Zé Guilherme, ajudante do sacristão e primeiro responsável pelo toque dos sinos. Aproximando-se as festas da vila, deve estar a arengar sobre o fardo que o espera, como sempre para o dia das festas. Vai aí o Miguel cauteleiro, aquele que diz que traz a sorte no papel. Aquele corrimento do olho direito não há maneira de passar. O Poeta de Pascoais acaba de entrar no Café. É um homem franzino mas de um grande respeito, pudera! Vêm aí o Sr. Vinhós e o Sr. Gonçalves. Pois, já deu meio-dia. Trabalhando na mesma Repartição, vão sempre próximos um do outro, mas raramente se encontram. Acaba de aflorar à porta do Mosteiro o Sr. Aires, o sacristão. É uma pessoa por quem tenho uma admiração muito grande. Não que ele foi quem fez o presépio de S. Gonçalo. Aquela cidade maravilhosa que ele monta ali todos os anos, um mundo de casinhas iluminadas, com altas montanhas lá atrás e a estrela anunciadora. Ele nem imagina o deslumbramento que é para mim aquele presépio. Vem ali o D. Manuel Alvito no seu Delage preto. Tem um trabalhar imponente, até dizem que tem um motor de avião. À porta do estabelecimento do Carvalho da Loja está a pequena tertúlia constituída pelo Sr. Carvalho, o Dr. Carvalho e o Sr. Padre Morais. Presumo que os pontos de vista não sejam lá muito coincidentes, mas a conversa às vezes parece animada. Uma ponta de ironia parece-me às vezes soltar-se do gargalhar contido do Dr. Carvalho. No Café Bar, deslocando-se em torno do bilhar – bilhar livre – vê-se o Dr. Armando Brandão. É de crer que esteja a entreter-se dando umas tacadas, por não haver de momento adversário à altura. Aliás não é fácil deparar-se-lhe esse tipo de adversário. Aproximando-se as festas, não deve tardar que instalem ali junto ao Mosteiro os coretos da música. Isto faz-me recordar um concerto que houve aqui numa noite de Verão. A melodia que estava a ser interpretada fez-me parar. Passado algum tempo um cavalheiro que estava à minha beira e decerto entendeu a minha curiosidade, segredou-me: «Isto chama-se ‘num mercado Persa’, de Catelvi». Instantaneamente senti-me transportado a esse fascinante mundo árabe. A melodia impressionou-me de tal modo, que continuo com ela no ouvido e se calhar não vou esquecê-la mais. Este é o tempo em que da minha alma transbordava seiva romântica e Júlio Dinis o autor cuja mensagem bucólica me convence. Para além da sede de amor que me inflama a alma, a música começa a tomar um lugar de relevo na minha sensibilidade. A Natureza é outro elemento, porventura essencial, factor mãe, do qual os outros dimanam. O meu amigo Zé Dinis é por esta época, em tempo de férias, o meu companheiro de caminhadas e divagações pelos recantos desta nossa terra, certa identidade de interesses mas em que, na pessoa dele, o poder da construção poética era evidente. Nas nossas caminhadas havia uma acentuada curiosidade pelas casas senhoriais, sobretudo aquelas que sabíamos relacionadas com a passagem dos invasores franceses no princípio do século dezanove. Era como se a história daquelas casas nos dissesse de alguma maneira respeito. Regra geral terminávamos a nossa caminhada com uma partida de bilhar (bilhar livre), de que cheguei a estar viciado. E o vício era tal que, quando sai de Amarante, fiquei a dever 10 escudos no Café. Muitos anos mais tarde falei nessa dívida ao meu amigo senhor Agostinho, dono do Café, que sorriu na atitude de quem perdoava. É certo que pela minha parte a considerava também já prescrita. Por este tempo vou ao Porto uma vez por ano por causa dos olhos, a não ser que haja exames claros. Aprecio muito as idas ao Porto, que é para mim a grande cidade. Para alem da viagem de comboio que é mais ou menos atribulada sobretudo na passagem dos túneis, onde as carruagens se inundam de fumo que não tem por onde escapar, sinto uma certa imponência no desembarque na estação de S. Bento. Aquele enorme átrio com os painéis que o revestem sempre me impressiona. Já no exterior da Estação, o tráfego intenso nas ruas, a majestade dos prédios e sobretudo os carros eléctricos com o tilintar das suas campainhas e o característico roncar rua acima, fazem-me sentir que estou na grande cidade. Por isso e por outras coisas (encontro com familiares etc.) Eu adoro ir ao Porto, a minha grande cidade.
Antes que me esqueça quero referir-me ao episódio daquela bofetada que apanhei do professor, ainda na escola da Lomba, quando nos eram ensinadas as horas. Na altura não entendi nada, mas com o tempo acho que a questão se foi aclarando na minha cabeça. Estando nós, os da primeira classe em torno da secretária, devo ter dado ao professor a ilusão de que estava a empurrar alguém. Na verdade o que eu estaria era a esticar-me para ver a explicação, por ver mal, pois ainda não usaria óculos. Admito que a enorme bofetada tenha ficado a zumbir na cabeça do Sr. Mota e Costa, levando-o a concluir que eu tinha dificuldades de visão. Aliás recordo-me de que foi ele quem chegou naturalmente a essa conclusão, informando os meus pais. Para mim está esclarecido o imbróglio da bofetada e absolvido o seu autor.
Retomando o tempo real, quero nesta hora referir-me a uma «cena» que acontece uma vez no ano na nossa vila e que francamente mexe comigo. È na semana Santa, muito concretamente trata-se da procissão de Quinta-feira Santa. Não vou atrever-me a tentar definir os meus sentimentos ou sensibilidades dessa noite para mim diferente. Vou tão somente fornecer alguns «ingredientes» que poderão ajudar a chegar a conclusões: Pelas nove e meia da noite o povo começa a afluir às ruas antigas da vila. Não é uma multidão compacta, mas apenas as gentes da vila e arredores, que só esses têm conhecimento do que vai passar-se. Apesar da grandeza que tem para mim e para muitos, o seu conhecimento não transpõe os limites do concelho. Por volta das dez horas está a luz pública apagada, só uma ou outra vela nas sacadas das casas. Subitamente do relativo respeitoso silencio, sai o característico matraquear das matracas, a anunciar que a procissão vem já lá no alto da rua da Cadeia. Já sabemos que quem toca as matracas é o irmão da Misericórdia, que é o mais velho e vem na frente. A procissão aproxima-se e então de repente ouvem-se os acordes melodiosos da Banda de música interpretando a Marcha Fúnebre de Chopin. Para além dos acordes da Banda o que se ouve é o bater sincopado dos bastões no lajedo da rua, sobretudo os dos homens que carregam o pesadíssimo andor de Cristo Crucificado e o sussurro dos passos da multidão que acompanha o desfile religioso. É um facto que o meu pai também lá vai incorporado. Ocorre -me que há 50, 100, 150 anos outras pessoas outras multidões realizavam com,
o mesmo espírito esta procissão, pisavam as mesmas pedras, sem duvida a mesma terra, pessoas afinal do nosso sangue. Enfim, há qualquer coisa de importante que acontece comigo nesta noite e eu não sou capaz de definir.
Uma coisa que me dava um certo gozo nas noites de Inverno, era o desenho, desenho livre. A minha predilecção, como não podia deixar de ser eram os automóveis. Reproduzir os que conhecia ou tentar apurar-lhes o modelo, dava-me um gozo que ficou também nos meus arquivos. Ás vezes penso no quanto há-de ser bom uma pessoa realizar na vida uma actividade profissional com que tenha sonhado. Acho que da minha geração bem poucos tiveram esse tipo de confronto. Admito que haja nisto um certo lirismo. Quantos tendo seguido a carreira que escolheram, nem por isso se realizaram profissionalmente, e quantos seguindo a rota das suas circunstâncias não acabaram por se sentirem realizados na actividade que se lhes deparou?! Mas como (sonhando) eu adoraria ser desenhador de automóveis. Mas que pretensão, Deus meu. É curioso que o meu fascínio pelos automóveis, nessa idade, eu penso que o não deixava transparecer. Os meus colegas não se apercebiam dessa minha fraqueza, a não ser, vagamente nas aulas de educação visual. É que se o professor anunciava desenho livre, lá acabava por aparecer na minha folha de desenho uma corrida de automóveis. Mas como o destino é caprichoso, acabei por tirar a carta só pelos trinta anos, e aos cinquenta não tinha já condições de conduzir.
É ainda que esse meu remoto encantamento automóvel se confronta hoje com a minha quase relutância em relação aos automóveis. Não é uma questão de senilidade. Considero uma atitude madura em relação àquilo que acho ser o maior agente poluidor à face da terra. Isto não significa que tenha perdido a sensibilidade em relação às linhas automóvel. Mas carros como os das décadas de 30 e de 40, não voltam a aparecer.
Vamos com frequência por este tempo à casa de nossos avós na aldeia de Vila Chã do Marão, linda aldeia debruçada sobre o rio Ôlo, ali junto à confluência com o Tâmega. A propriedade dos meus avós, que aliás já então não existiam, situava-se na zona ribeirinha, quer dizer, perto do rio, com tudo o que isso pode significar para crianças e adultos. Para cima desta zona ribeirinha ergue-se uma montanha majestosa, feita de penhascos e fundegos e atravessada por levadas de água, de que oiço ainda a incomparável correnteza qual sussurro dos primórdios do tempo., Mais acima outra zona habitada e cultivada, correspondente à chamada Vila Chã de Cima, com bela panorâmica para o Marão. Não são para esquecer as recordações das nossas idas ou estada nesta casa dos nossos avós. Há um registo que eu não posso deixar de fazer em relação às pessoas desta aldeia de Amarante. Acho que cedo tomei consciência desta realidade. Refiro-me à forma francamente cordial como as pessoas se tratavam quando se cruzavam e inevitavelmente paravam e gastavam uns minutos ou horas com o vizinho ou aquele que passava. A certa altura comecei a interrogar-me sobre se havia autenticidade neste tipo de relacionamento. Fui-me convencendo de que sim, havia verdade. Estou seguramente convencido de que era diferente, superior, o trato das pessoas de Vila Chã. Parte das vezes as idas a Vila Chã eram a pé com a nossa mãe. Acontece que ela era pessoa conhecida e por isso a hipótese de uma boleia era sempre de admitir, apesar de a possibilidade de um carro ser remota. Por mais do que uma vez tivemos a boleia do Sr. Zé Pinheiro, que vinha das minas de Vieiros e para nós crianças, nos arranjava um espaço no fourgon da pequena furgoneta. E que viagem fantástica essa era. Guardo ainda na retina o azulejo que existia no tanque da Quinta dos meus avós, cujo conteúdo me intrigava sempre que por ele passava os olhos. Dizia simplesmente: «ninguém diga desta água não beberei». Só bem mais tarde lhe percebi e o alcance e vi que não tinha muito que ver com a água daquela fonte. Os nossos familiares das Casas (era assim que se chamava a Quinta), eram a tia Amélia, o tio Zé do Douro, a tia Laura, a Célia e o Feliciano. Actualmente só a Célia, nossa prima, é viva. Não esquecerei o acolhimento carinhoso que nos dispensavam sempre que lá íamos. Adorava os petiscos que nos arranjavam. Faço aqui um registo especial ao Sr. Abílio do Douro (irmão do tio Zé). Era um homem que na altura passava já dos cinquenta anos, e por isso era para nós já um homem velho. Só que adorava ouvir as histórias que nos contava, muitas da vida real, como por exemplo a vinda à terra, aos fins-de-semana, quando andava na tropa em Vila Real. É que por montes e vales ele atravessava todo o Marão, isto para estar duas ou três horas com a namorada. Um dia desafiou-me para ir com ele às Fisgas do Ermelo, nas férias. Entusiasmei-me com a ideia, fiz a cabeça dos meus pais, mas nas vésperas ele adoece e a oportunidade infelizmente não voltou a surgir. E a Júlia, filha do Sr. Abílio, camponesa linda e bem estruturada, o que é feito dela? É interessante referir a razão de ser do sobrenome «do Douro». Acontece que o pai dos do Douro era natural daquela região e desertando da vida militar, acolheu-se à casa de Santa Eulália, aqui muito próxima que gozaria de Privilégio. Por aqui ficou e proliferou.
Falar na casa de meus avós é falar na família e falar na família desafia-me a uma referência a meus pais. Orgulho-me deles e estou-lhes grato pelo que fizeram ou foram capazes de fazer por nós. Importa referir que o nosso tempo de infância e de adolescência decorreram no período entre os finais da guerra de 39 e o pós-guerra. Um tempo difícil, daí uma certa contenção a todos os níveis que tenho bem presente e que se repercutia em coisas que em circunstâncias normais nos poderiam ser prodigalizadas. Isso tem que ver por exemplo com a minha falta de coragem para forçar as coisas no sentido de prosseguir estudos superiores. De qualquer modo acho que houve aí fraqueza minha, que mais tarde vim a lamentar. O meu pai era um homem simples oriundo de uma família de agricultores, que a vida poliu, viveu uma vida intensa de trabalho e conheceu a experiência amarga de ver morrer um filho aos nove anos em circunstâncias dramáticas. Na sua simplicidade era um homem austero que me imprimia um grande respeito, apesar de me não recordar de me ter algum dia batido. A minha mãe uma mulher medianamente culta (tinha o liceu do seu tempo, o que não era comum na mulher), expressava-se e escrevia muito bem. A par de uns certos medos que terão que ver com uma religiosidade exacerbada a que não terei escapado ileso, sei que , bem compensadoras, lhe devo influências ou sensibilidades que me são caras. Por exemplo o sentido da herança familiar. Contava-nos com frequência situações e episódios das gerações anteriores. Encantava-me ouvi-la falar do seu avô Pedro que morreu com 113 anos e era brasileiro. Teria vindo de visita a Portugal correspondendo a um desafio dum amigo português que era tio-avô de minha mãe. Acontece que se apaixonou por uma irmã do amigo português, Eugénia Andrade de seu nome, com quem veio a casar-se. Teria sido ele que introduziu na família a o cultivo do feijão preto, que na realidade nos meus tempos de criança acho que lá na região só na minha família se usava. As outras pessoas estranhavam semelhante feijão. Apaixonada por exemplo pela musica de raiz espanhola, (continuo a referir-me à minha mãe), foi com ela que aprendi a reconhecer as Zarzuelas, que continuam a ser uma música de eleição para mim, Em horas de abatimento é frequente dar a preferência a este tipo de música, capaz de me recompor o ânimo. Obrigado mãe.
Acho que chegou o momento de me referir, ainda que telegraficamente a essa criatura que, em circunstâncias normais, complementa e dá significado à vida do homem. Naturalmente que me refiro à Mulher, essa outra parte do homem, bem mais humanamente rica do que ele, inesgotável taça do amor, da ternura, da entrega desinteressada e, claro, do encantamento, apesar de por ele espezinhada pelos séculos dos séculos. O sentimento de uma dívida de gratidão imensa é, a este propósito, o que me enche a alma nesta hora. A minha homenagem presto-lha através dessas duas preciosas mulheres que em tempos diferentes atravessaram e deram razão de ser aos meus dias. Que mundo de considerações este tema me mereceria! Prefiro deixá-las para os poetas.
Levou-me tempo a responder ao desafio de integrar o Orfeão Académico de Amarante ou Orfeão Amarantino, como posteriormente veio a designar-se em resultado de um contencioso que me escapa. Guardo uma excelente lembrança desse período. As poucas saídas que houve fora de portas revestiam-se sempre de importância para nós, os mais velhos e os mais novos, em que me incluía. Registo duas situações em particular, por marcarem um tempo que nada tem que ver com este, cinquenta anos decorridos, que a geração dos nossos filhos não tem condições de entender. Como posso esquecer aquela participação no cortejo de oferendas para o Hospital?! Lá íamos todos, garbosos, uns novatos, mas também uns tantos bem mais velhos de cabelo grisalho, todos imponentes, em cima da camioneta do Sr. Soares, conduzida pelo Zé Soares, que de bom grado assedia ao desafio. Outra cena foi a despedida do nosso maestro Padre Barbosa, cuja memória não posso deixar de sublinhar, a quando da sua despedida para uma paróquia do distrito de Aveiro. Estávamos na década de 50 é claro e os meios de transporte eram o que eram e o nosso querido maestro morava a 8 quilómetros da vila, exactamente em Fridão e os orfeonistas eram alguns 50. Presumindo agora a esta distância que a camioneta do Sr. Soares não estivesse disponível, o assunto lá foi discutido, não sei se democraticamente, e numa excelente noite – acho que de Abril pela brisa da beira Tâmega que ainda me sinto capaz de respirar e pelo luar esplêndido que fazia e nos não deixava perder no caminho ou meter o pé na poça – depois de um jantar antecipado e decerto frugal, já que na nossa cabeça morava a expectativa de que o Mestre teria alguma coisa para oferecer a este punhado de garimpeiros, aí vamos nós estrada fora nunca indiferentes ao luar que se espelha no rio e, que nos acompanha quase até Fridão. A nossa expectativa não saiu gorada e foi a primeira vez que matei a sede com vinho do Porto. Recordar o Orfeão é ainda recuar às noites de ensaio, aos cantares em voga nessa época, como a Trigueirinha e o Alentejo, que não faziam parte do reportório oficial mas nos iluminavam o espírito, e é recordar a senhora Maria Louceira, o cumprimento amistoso que lhe fazíamos ao atravessar o Claustro a uma hora em que ela descansava já para as canseiras do mercado do dia seguinte. Ela retribuía com lisonjeada graça. Mas falar nas coisas do Orfeão é regressar à música e por isso estarei a tempo de recordar aquilo que terá sido a minha primeira envolvência musical, ali pelos 11 anos. Um dia chega-me aos ouvidos que o meu tio Neca, que morava no Porto, me ia oferecer um violino. Senti isso como uma coisa importante para mim e fiquei ansioso pela sua chegada. Um dia próximo lá me chega pelo recoveiro o prometido violino. Logo no meu primeiro contacto de leigo na matéria, pareceu-me que o instrumento afinal tinha que se lhe dissesse. Lá andei uns tempos a frequentar umas aulas, (na D. Luísa Marinho) até que um dia, quando preparava uma lição, cheguei à absoluta conclusão de que não tinha condições para, com o instrumento colocado ler a pauta, atirei com o violino para cima da cama, com vontade de o desfazer apesar de não ver nele a culpa. Acabou-se assim para mim o projecto musical. Mas não posso dizer que este tenha sido um rompimento radical e definitivo com o meu violino. De longe a longe, ou melhor, de muito longe em muito longe, lá o vou desencantar num canto da casa, ou por cima de um guarda fatos. Então pego nele e faço com ele um ruído que só eu me sinto no direito de ouvir, o que acontece durante meia dúzia de dias. Depois lá adormece algures até uma distante nova oportunidade.
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Prodigiosa que é a nossa mente, subitamente viajo para o futuro e de novo me confronto com o homem que sou no alto dos meus sessenta anos. De novo diviso e assumo a vastidão do tempo interrogando-me sobre o que ele realizou na minha pessoa. Sinto o importante que isso é, mas logo o desalento de quem reconhece que foi minúsculo o monte que construiu. Enquanto atento nesse minúsculo monte que é o meu e me interrogo sobre o que ele devia ou não ser, descortinando aqui razões para que ele fosse mais alto e ali justificações para a sua modéstia de altura, como que desperto de um sonho e vejo que os meus pés pisam o cocuruto da capela de S. Cristóvão no alto da montanha da Penha. Sinto que estou num sítio privilegiado, fatal ponto de romagem desde que os tempos guardam memória, para as gentes do vale a quem as eternas interrogações se colocavam e viam com alguma lógica os cumes ou planos altos como indicativos da Entidade Criadora. Tal como eles e com espírito similar, os meus olhos estendem-se deslumbrados pela grandeza da paisagem em que se destaca, no sopé da montanha, a cidade que o tempo fez também já minha e à qual uma densa teia histórica conferiu inegável dignidade. A cidade onde definitivamente construí ou foi construída a pessoa que sou, aonde vivi, já que viver é confrontarmo-nos com o trabalho, a alegria (que contém em si coisas inestimáveis como a sã amizade, a ternura e o amor), e fatalmente o sofrimento, nas suas incontáveis cambiantes. Tempos de felicidade e de ternura infinitos e tempos de funda amargura, porque de todos eles é feito o tempo que faz a vida. Por isso é de vida que melhor fala esta cidade que adoptei e que por isso mesmo anelo. Nesta hora, em que o Sol deixa rubores no nebuloso Poente, são de mistério os acordes que me tangem a alma. E a saudade o que prevalece, mas saudade caldeada nos ingredientes que conferem razão de ser à vida. Uma vez mais cerro os olhos fragilizados pelo tempo num esforço de distinguir com alguma nitidez as ruas e recantos da cidade. Não logram esse objectivo. Não vêm mas adivinham o emaranhado das ruas e vielas do histórico Burgo. Estou a ver-me percorrê-las através do tempo, mas sobretudo naqueles instantes que reclamam de nós um registo especial. Sinto ainda o calor das pequeninas mãos dos meus filhos levando-os, por exemplo, quando esta função me incumbia, às escolas da pré primária. Ocorre-me a primeira vez que vim à Penha e naturalmente à nossa cidade. Foi em tempo de Gualterianas, muito afamadas na época. Tinha os meus dez anos e o meu pai teve a repentina mas feliz ideia de nos trazer às festas de Guimarães. Acredito que se tenha gerado aí o meu sentimento de idolatração à montanha da Penha. A cidade foi outro encantamento, sobretudo de ordem histórica. Mas há uma recordação que apesar de dilacerante, não posso deixar de referir neste historial. Recordo perfeitamente a nossa entrada e visita à Igreja de S. Gualter, decerto pela sua arquitectura que me não passou despercebida, mas também pela iluminação festiva que continua a caracterizá-la, e ainda e decerto de uma maneira especial, pela indicação que nos foi feita de que estava ali um santo, o corpo de um santo. Essa informação impressionou-nos a todos. Mas o que se passa é que nessa minha idade de criança eu não tinha condições de adivinhar que passadas muitas dezenas de anos, nesta mesma cidade que me estava a encantar, mas desta precisa Igreja de S. Gualter, haveria de sair um dia, numa tarde de Setembro, o funeral de um filho meu. Às vezes apetece-me acreditar que as coisas estão pré-determinadas na nossa vida. Sim, apetece-me acreditar que naquele memorável fim de tarde da nossa visita à Igreja de S. Gualter, estava já inscrito na minha mente, no mais misterioso da pessoa que somos, algo que me dizia visceralmente respeito para ali mesmo acontecer dezenas de anos mais tarde. Mas como muito bem diz o povo, prefiro acreditar que os Mistérios de Deus são insondáveis, por nos estar interdito transpor a barreira que deles nos separa.
Hoje veio-me às mãos aquela velha fotografia em que estão os meus pais, eu e o meu irmão (uma reprodução do original). Foi ali pelos meus doze anos, recordo-me perfeitamente. Foi tirada na Foto-Arte, em Amarante e foi com hora marcada e tudo. Enfim, um acontecimento. Já a vi mil e uma vezes, mas acho que só nesta hora olho para ela com olhos de ver. Estamos todos bem. O meu irmão com um ar mais arguto mas também mais malandro (ele não leva a mal), e eu com um ar mais introspectivo, de quem olha mais para dentro, decerto na atitude de quem vasculha o futuro, começa a interrogar-se ingenuamente sobre os seus conteúdos, porventura os que estão escritos e os que não estão escritos. Gosto de me ver hoje neste retrato, acho que há até uma ponta de ternura neste confronto com o meu eu de há mais de meio século. Passo um relance mais por este meu perfil de adolescente e acto contínuo atento na longa caminhada e na pessoa desbastada pelo tempo que hoje sou.
De tudo, apesar dos fatais erros e escolhos que fazem o dia a dia da criatura humana, percorre-me hoje nesta hora um sentimento de dignidade que me reconforta.
Feita esta retrospectiva da minha caminhada pelo tempo, acho que este trabalho ficaria incompleto se não fizesse o registo de algumas considerações a propósito de coisas, matérias, sentimentos, emoções, situações, comportamentos, sei lá, que considero importantes, e relativamente às quais julgo dispor hoje de uma opinião. Não a dita científica, que nos é dada pelos compêndios académicos e pelos Mestres nas respectivas áreas, e que não possuo, mas aquela de que disponho e me foi inculcada em toda uma vida, pela infindável experiência que esta nos proporciona, por alguma capacidade que porventura tenha de estar minimamente atento nessa caminhada irrepetível.
As considerações que farei são aleatórias, não correspondendo a qualquer ordem de importância, cronológica ou outra, decorrendo do que eventualmente e me venha à ideia.
Para já e para começar ocorre-me o conceito de Felicidade. Acho que não é fácil discorrer a este respeito, subjectiva que ela é. Ouve-se com frequência dizer que o dinheiro é a mola real da vida. Não me parece que o seja mesmo, mas para aqueles que estão seguros desse conceito, o dinheiro é fatalmente um grande agente da felicidade. Pessoalmente acho que é um elemento de importância, não pela matéria física de que é feito, mas pelo intermediário que ele consegue ser na obtenção de coisas que, diga-se a verdade, são importantes à construção da dita felicidade. Mas resolvida com ele, o dinheiro, essa base que quase todos temos como fundamental, existe uma série de outros ingredientes que, com a devida vénia têm outra dignidade que não tem o vil metal (ele que me perdoe). Penso em coisas como o Amor, a Amizade, a capacidade que tenhamos de olhar o mundo, filtrando aquilo que deve ser filtrado. Referi o Amor e a Amizade por os considerar absolutamente os elementos maiores que nos acompanham na vida, ainda que por vezes e para nosso sofrimento de uma maneira episódica, sujeitos a um mundo de contingências. É extraordinário que quer um quer outro os recebemos e concedemos aos outros. Isto significa que o amor e a amizade os vamos encontrar nos iguais a nós na espécie, o que nos diz da importância que temos ou devíamos ter uns para com os outros na humana caminhada. Entretanto a amizade levanta-me uma questão, considerando que muitas vezes enferma de autenticidade. Nessa altura tenho que reconhecer a importância que não tem preço da dedicação desse eterno amigo que, permitam-me o despudor se ele existe, é o cão. Quero dizer que os amigos existem, mas nunca são muitos.
As emoções falam-nos com uma clareza especial dos nossos sentimentos. Direi que elas são a voz da alma, que lhe passou sublime procuração. Uma destas noites num contexto apropriado assisti à execução de «Luzes da Ribalta» e «Recuerdos de Alhambra». Foi um instante rico pela grandeza que sempre consigo agarrar da primeira, a que fatalmente associo o seu autor, esse velho incomparável Charlie Chaplin e pelos sentimentos que a segunda desperta em mim desde que a escutei pela primeira vez, capaz de me fazer sentir a dor que, vão passados quinhentos anos, experimentou o Sultão de Granada na hora da partida para terras da Mourama. (refiro Mourama, não com qualquer sentido pejorativo, mas com todo o respeito e apreço que tenho pela civilização e cultura árabes – salvaguardados, claro, os fundamentalismos). Também Tárrega foi um homem inspirado quando compôs “Recuerdos de Alhambra”. Nesse instante os meus olhos ficaram húmidos e era algo do mundo do sublime que falava em mim. Este um desses fogachos (ou lampejos de felicidade), mero exemplo, que de vez em quando nos arrebatam. Aliás a música, incomparavelmente mais do que qualquer outra forma de arte, tem para mim esse condão.
Ao aludir por estas palavras a essa forma de arte não consigo abstrair-me do comentário que um dia ouvi na televisão a um reputado artista Português de outra área, cujo nome não me sinto no direito de referir. Dizia ele na sequência de outros comentários e com uma naturalidade arrepiante, que não gostava de música. Senti-me escandalizado com aquelas palavras ditas por aquela pessoa e pensei para comigo num sentir quase irracional: «quem não gosta de música devia ser preso»… Claro que o não faria se tivesse essa autoridade, mas entendi e entendo esse remoto sentir.
É frequente ouvir-se dizer que o que conta é o futuro. Que o passado é passado e por isso já não importa, é mera perda de tempo. Em meu entender o passado é o fantástico alicerce onde mergulham as raízes do futuro. Acho que há boas provas disso e os historiadores a todos os níveis no-lo demonstram. Cá por mim sinto uma certa veneração pelo passado, daí que com frequência viajo pelos seus caminhos. Reconheço a absoluta importância do Futuro, até por que é para ele que fatalmente caminhamos, daí que nos importa e de que maneira a forma como ele se nos apresente no momento, e são todos os momentos, em que com ele nos confrontamos. Direi que todos reconhecemos a importância de um e do outro sendo uns mais fascinados por um do que pelo outro. Considerando as coisas por essa perspectiva, terei que me reconhecer bem mais fascinado pelo Passado. Se me fosse facultado fazer uma viagem opcional, para a frente ou para trás, acho que apesar das forças que me puxam para o futuro, a minha opção acabava por ser o Passado. Não decerto uma viagem masoquista ao encontro dos meus pontos de sofrimento. É óbvio. Quantas vezes nos recantos do meu passado mais ou menos distante vou agarrar um estado de alma subtil e retemperador. Há um tempo lá bem para trás no fragor da minha despreocupada infância que visito com frequência e com um certo fascínio, apesar do que comporta de dramático. É justamente o estertor da Segunda Guerra mundial, os últimos acontecimentos, como o lançamento da bomba atómica e a notícia do fim da guerra. Há desse tempo um mundo de recordações que me são caras. Ocorre-me o ambiente familiar desse tempo e as notícias da guerra que o meu pai, homem simples mas curioso das coisas que vão por esse mundo, á noite ao jantar levava ao conhecimento da nossa mãe e que nós naturalmente captávamos. Recordo que ouvia com interesse esse tipo de notícias, mas de que a minha mente filtrava o lado patético ou de sofrimento humano. Daí que é estranhamente positiva a memória que guardo dessa época.
A displicência (não sei se é o termo próprio) com que vi há bocado um casal de jovens engalfinharem-se amorosamente, capazes de interromperem o trânsito das pessoas. Pareceu-me um exagero de comportamento, mas logo fiquei a interrogar-me sobre se não estaria afastado da realidade o meu sentir um tanto crítico. Esta reflexão fez-me saltar para uma outra mais ampla envolvendo a questão da sexualidade. Pensei no quanto as coisas mudaram desde a minha adolescência, ou seja, nestes cinquenta anos. Dum tempo em que nessa matéria tudo ou quase estava vedado, sobretudo a mulher era esmagada pelas circunstâncias e preconceitos, projectou-se a humanidade, sobretudo o mundo ocidental dito civilizado numa atitude que muitas vezes não posso deixar de sentir como de desregramento. Às vezes fico a perguntar-me se é verdade aquilo que está a acontecer ou a ser-nos informado pelos Média, embora logo a seguir assuma a autenticidade que terá que haver na dita informação. Uma das facetas que chama a minha atenção é a dos desvios sexuais, chegando a interrogar-me para que sociedade caminhamos. Pretende dar-se a imagem de que tudo é natural, muito autêntico. Pessoalmente continuo com dificuldade em digerir certo grau de liberdades. O problema coloca-se também em relação à homossexualidade. Na minha adolescência a alusão à homossexualidade vinha envolta num clima de aparente fantasia, como se fosse uma falsa questão elaborada pelos nossos neurónios. Hoje em dia a darmos crédito aos Média, chega a parecer que o mundo se virou do avesso. Sinto-me relutante a acreditar nisso. Como heterossexual que graças a Deus sempre me senti (não sei graças a quem o homossexual é quem é, embora creia na justeza infinita do Criador), a visão que tenho do problema é naturalmente exterior. Como tal, só posso dizer o que penso, fruto da informação que através do tempo fui colhendo. E o que penso, com todo o respeito por quem pense ou sinta de maneira diferente, é que a homossexualidade é um desajuste ou descuido da natureza. Pessoalmente sinto repulsa pelo comportamento homossexual. No entanto, respeito absolutamente aquele em cuja natureza esteja inscrita essa tendência, incapaz, por não ter esse direito, de o hostilizar. Seria atentar contra a natureza de alguém e portanto absurdo. Não tenho nada nem tenho que ter contra a união de homossexuais, mas custa-me a aceitar a palavra casamento. Naturalmente que admito sempre evoluir nas minhas posições.
Pequenas coisas, porventura insignificâncias, me levam aquele tempo de há muito, passando a integrar o quinhão das coisas boas que me cabem. É de hoje, é de agora – volvidos sessenta anos - o prazer de saltar para as chedas de um carro de bois e gozar-lhe o atribulado andamento por umas escassas centenas de metros. Continua a ser de hoje o prazer da boleia que nos dava o pai quando ao Domingo ia buscar o padre ao Salvador, que era a freguesia próxima que também paroquiava. Claro que a boleia nos custava uma caminhada a pé no sentido do Salvador. Não havia o risco de perdermos o controle do carro, já que não era nada provável que outro carro por ali transitasse (estávamos na década de quarenta). Mas como era compensada a caminhada!
Recordo que as considerações que faço não obedecem a qualquer esquema, absolutamente aleatórias, podendo mesmo acontecer que aqui e além volte a um tema já abordado.
Voltando ao conceito de Felicidade, às vezes considero-a uma espécie de fio da navalha, qualquer coisa de muito subtil e contingente que decorre ao longo desse arriscado fio. Por esse caminho entenderei a Felicidade como um estado de tranquilidade que fomos capazes de construir e as circunstâncias nos facilitaram, mas entendo eu, uma tranquilidade dinâmica, naturalmente incompatível com o tédio. Não sei, por agora, ir mais longe na minha explanação.
Não sei se falar de Felicidade implica falar de Sofrimento. Decerto que sim, de tal modo são comparsas e fraternalmente se alternam. Não estou seguro do que vou dizer a este respeito, mas sou tentado a pensar que o segundo, o sofrimento, está inscrito com letras mais vivas no nosso caminhar pelo tempo. Admito estar errado e profundamente desejo está-lo, mas tenho a impressão de que nos é mais fatal a dor do que a felicidade. Penso assim, apesar de lá no mais fundo acreditar que assim não seja. Há aliás quem defenda que existe um misterioso equilíbrio entre ambos. Não estará isento de lógica este ponto de vista, mas oxalá que o fiel da balança penda para o lado que não é o da minha dita impressão. Pensando melhor prefiro acreditar que esse Pendor é diverso de pessoa para pessoa, depende de uma infinidade de factores e não sei até que ponto a teoria do Karma não seja depositária de verdade a este respeito.
Há pouco tempo num passeio às Falhas de Valência, disse-me um amigo, o Sr. Ruão, que tinha feito a viagem do Transiberiano. Fiquei surpreendido e curioso, já que esta é a viagem que desde a minha adolescência elegi como a viagem dos meus sonhos. Só o facto de ela ter início na mítica cidade de S. Petersburgo, mil e uma vezes calcorreada pelo conturbado Raschkolnikov, enriquece ou sempre enriqueceu o projecto de a levar a cabo. A ideia das paragens nas mais importantes cidades da Ásia Central, estou a pensar em Samarcanda que, não sei porquê mas sempre imaginei com profundas marcas muçulmanas e decerto também por isso emprestando ao meu imaginário um sabor romântico, terá sido sempre um factor de desafio. A verdade é que, como em relação a outras coisas, foi um sonho que não realizei e não vejo como provável realizá-lo. A propósito deste tipo de sonhos, direi que os sonhos viáveis, pergunto-me às vezes se sonhei suficientemente alto para os agarrar, se não foi por fraqueza minha, por falta de uma verdadeira vontade. Acho que sim, que houve uma boa dose de incapacidade minha, de falta de uma vontade forte. Acontece que neste tipo de juízos acho que tenho a tendência de me justificar, de endossar essa responsabilidade a outros factores. Os meus olhos são aqueles que na maioria das vezes pagam a factura. Também é verdade que quando olho à minha volta constato que a minha dificuldade ou dificuldades é a dificuldade da generalidade dos que me cercam. Também eles tiveram sonhos e não os concretizaram. Direi que existe uma pequena percentagem de pessoas que agarram os sonhos com uma determinação tal que os levam avante por grandes que sejam. Como em tudo na vida penso que uma parte da responsabilidade será genética, está já na estrutura da pessoa, mas penso também que muita dessa responsabilidade está em influências que recebeu de fora, factores educativos. Acredito hoje que a criança pode ser ajudada a sonhar alto. Não sei se o consegui em relação aos meus filhos. Acho que se educasse hoje, encararia com mais força essa faceta. Vem isto a propósito do Transiberiano e este a propósito da ideia de viajar. Quero com isto salientar a importância que viajar tem para mim. Essa importância faz-me recordar um ditado que com frequência ouvia da minha mãe. Dizia ela que era voz do povo que o homem para o ser verdadeiramente precisa de - ou andar ou saber ler -. Daí terá ficado em mim a ideia de que andar (aqui no sentido de viajar, claro) é importante. Estou a lembrar-me de um conterrâneo meu que, novo ainda e chegado às férias, montava a sua então já «velha moto e aí ia ele Europa fora numa de uma certa aventura. Sabia-se que ele realizava trabalhos por lá que lhe proporcionavam economias que lhe permitiam prosseguir na sua aventurosa viagem. Eu na altura encarava isso como uma certa extravagância. É bem diferente o que hoje penso a esse respeito e decorridos que vão cinquenta anos, vai para ele a minha admiração tardia.
Mas mesmo abstraindo desse tipo de viagem merecedora de uma referência especial até pela dose de aventura que comportava, acho que tenho alguma palavra a dizer acerca das algumas viagens que fiz, ou melhor, passeios que dei e de que para além do centro e sul da Europa, terei de destacar os Estados Unidos da América, a que me referirei adiante. É bom viajar nos termos em que o tenho feito, mas admiro, voltando à referencia que fiz atrás, aqueles que fazem da viagem uma aventura, que entram pelas entranhas desse mundo distante e estranho, e na vida, costumes e tradições desses povos longínquos. Os riscos que se correm, as incertezas e percalços da viagem, a fragilidade da máquina que por vezes nos transporta, acredito que façam da viagem um acontecimento inesquecível, que valeu a pena ser vivido. Nas viagens ou passeios que fiz não houve esse tipo de riscos e aventura, mas houve situações, peripécias, que sempre merecem registo. Por vezes pequenas coisas mas que as circunstancias, o ambiente humano, enriquecem. Ocorre-me por exemplo uma situação na viagem aos Estados Unidos (serão esses os motivos porque dou particular destaque a essa viagem). Estava eu a lavar os dentes e a preparar-me para me deitar, quando de repente um barulho quase ensurdecedor me deixou suspenso. A primeira coisa que me vem à cabeça é: «pois é. Estou na América, onde acontecem as coisas mais mirabolantes, onde a civilização chegou ao fim…Claro, carreguei para ai em algum botão e o resultado é este». Esta reflexão durou uma fracção de segundo, para logo, depois de uma sacudidela de cabeça como a procurar interpretar a estridência do som que me chegava, o meu modesto inglês captar palavras que lhe não eram estranhas. Um esforço mais e as palavras tornam-se entendíveis: «Ladies and gentleman, please, há um princípio de incêndio no hotel. Queiram fazer o favor de, sem atropelo, se aproximarem e descerem as escadas de emergência. Não usem os elevadores. Procedam com tranquilidade mas sem perda de demora». Pela minha parte, agarrei no estritamente essencial enquanto advertia a Marília da gravidade da situação, mergulho uma toalha em água e coloco-me na atitude da fuga que a meu ver se impunha. Acontece que há pessoas que encaram todas as situações, por sérias que sejam, com certo sentido de humor. Assim, enquanto eu me preparava para a arrancada, que eu achava que era ditada pelo mais transparente bom senso, a Marilia preocupava-se em recuperar de um pequeno cofre do hotel, as jóias, de valor real ou afectivo que levara consigo. Recolhia-as com a tranquilidade de quem não tem nenhum incêndio à espera. Levou tempo a recolha das jóias, como demorou tempo a minha paciência. Lá descemos as escadas com a celeridade que eu fui capaz de arrancar à situação quando, meio caminho andado, se ouve a tranquilizadora informação de que o fogo estava extinto. (A Marilia tinha razão). Recolhemos aos aposentos com um sentimento que à distância, até parece decepção, como quem procura situações de risco para lhe darem colorido à vida…. Isto apenas um exemplo das rocambolescas coisas que nos podem suceder quando viajamos. Mas diga-se que os poucos dias que passamos nas Américas foram pródigos em situações insuspeitadas. Numa ocasião em que acabáramos de comer um cachorro numa esplanada de Nova Iorque tive a necessidade de ir ao quarto de banho. Face às minhas dificuldades visuais em orientar-me, como sempre e como já era noite, lá nos encaminhamos na direcção conveniente, até que nos confrontamos com uma vistosa Nova Iorquina em que era notória uma atitude de cortês disponibilidade. Ao colocar-lhe no meu atabalhoado inglês os meus propósitos, a loiraça Nova Iorquina não podia ser mais solícita na informação. Assim mais pelo gesto do que pela palavra, concluímos que havia que descer umas escadas em caracol, que chegados ao fundo entrávamos numa grande sala e no cabo da mesma, do lado esquerdo, alguém nos orientaria para os quartos de banho. Lá tentamos dar conta do recado só que, chegados ao fundo das escadas, o que se nos depara não é só uma grande sala, mas um salão apinhado de gente jovem. Algo nos diz que temos de atravessar o salão em diagonal ao mesmo tempo que o meu inglês me diz que estamos no meio dum divertidíssimo local, onde um qualificado Entertainer põe a sala em alvoroço. O que eu não esperava era que a nossa desempenada e inusitada intromissão viesse enriquecer o espectáculo, na medida em que para todos os efeitos o interrompemos. Não consegui traduzir com rigor os comentários do Entertainer, mas pelo gargalhar que provocou e que se repetiu no nosso regresso, é de imaginar o gozo que terá sido.
Continuando na América, não posso dizer que tenha vindo de lá deslumbrado, apesar de ter gostado de ter feito essa viagem e das circunstâncias que a ditaram. Acontece sempre assim, quando a expectativa é muita, corremos o risco de nos sentirmos defraudados.
Numa manhã em que num cruzamento da pequena cidade de Princeton (grande pelo facto da sua Universidade ter tido como mestre o enorme Einstein) eu esperava pela Marilia que se deslumbrava na montra de uma vistosa sapataria, fico meio espantado ao dar com os olhos na carga de uma camioneta que pára na minha frente, atulhada de velharias. De repente tive a ilusão de que estava no terceiro mundo, como se na América não existissem coisas velhas, quinquilharias de toda a ordem. Num instante acordei para a realidade, afinal na América também nem tudo é fartura e opulência. A propósito devo dizer que não achei Nova Iorque uma coisa do outro mundo, agradando-me bem mais as grandes cidades Europeias. Tocou a minha sensibilidade o fosso ainda existente das torres gémeas e o recordar da tragédia, e senti falar-me da grandeza Americana sobretudo a Broadway na hora do lusco-fusco, grandeza arquitectónica e o mar de anúncios luminosos que a esta hora dão um brilho particular a esta zona da cidade. Ao ver-me na frente do Empire State Wilding percorreu-me um vago sentimento de decepção. Não consegui ver nele a imponência que no passado dele me deram postais e gravuras. Falam-me bem mais os graníticos cascos das velhas cidades Europeias.
Vi hoje na Televisão uma cena que me tocou. Não sei exactamente se era uma pura e simples imagem ou se um arranjo desse tipo. Vou mais para a segunda hipótese, mas para o efeito é indiferente. A imagem que me é dada e isso é o que importa, é a da visão da Terra vista da Lua. A Terra depara-se-nos aparentemente enorme, projectada no espaço, vendo-se em primeiro plano uma réstia de Lua, de onde parte a nossa observação. É como se só neste momento ganhasse a fantástica consciência de que afinal a Terra gira mesmo no Espaço, contrariando a infantil e ancestral ideia de que ela fosse a base do Mundo, a consola onde ele assenta, ou qualquer coisa de semelhante. Vê-la girar solta no Espaço, autónoma, numa missão que de todo nos escapa, é fantástico. Para enriquecer a imagem era visível o movimento de rotação e para a enriquecer ainda mais, a Terra estava iluminada, era como se estivesse a ser observada ao lusco-fusco, relativamente à nossa perspectiva. Gradualmente surgiam zonas mergulhadas na escuridão, mas em que se evidenciava a iluminação das áreas desenvolvidas, alternando com zonas mergulhadas na noite absoluta, sugerindo grande parte de África, a Ásia central e outras regiões pobres. O mais fantástico de tudo é a consciência, que acho que neste momento ganhei, de que a minha própria pessoa fazia parte da privilegiada tripulação que gravitava, sofria e amava, agarrava ou perseguia o seu punhado de felicidade ou sofrimento, vivia, naquele mundo desconcertante, além, que é a Terra. Aquilo que hoje vi na Televisão é demais para ser obra do Acaso, de um mundo de acasos que possam acontecer uns a seguir aos outros. Subitamente, quando me desvanecia no meu encantamento ante essa Terra que também é minha, onde mora a minha história, vem-me à ideia essa notícia fantasmagórica de que um meteorito gigante vem desenfreado em rota de colisão com a Terra. Não será hoje nem amanhã nem decerto na minha geração, mas será na geração de descendentes nossos que a brutal colisão acontece. Mas como nada esteja escrito a este respeito, resta-nos a esperança de que os dois astros venham a cruzar-se cerimoniosamente a uns tantos minutos luz de distância. Decerto que bastará um subtil golpe de alavanca para que esse vago desvio aconteça e os dois vertiginosos astros se cruzem sem consequências para além de um desconfortável abanão. Seria o colapso total, já que à Terra, esse prodigioso mundo que há pouco me deslumbrara não restava outro fim que não fosse ser reduzido a um torresmo e sugado por um dos buracos negros que enxameiam o universo.
Quando eu pensava ter dado as minhas reflexões por terminadas, de repente e graças a uma reportagem que vejo na Televisão, constato que há ainda alguns assuntos, talvez muitos, a merecerem atentas considerações.
Não me caberá a mim nem para isso teria o engenho preciso para as tecer. Mas tentarei algumas abordagens, aquelas para que me sentir mais desafiado. A reportagem que despoletou em mim este recobro de ânimo ocupava-se da cidade de Coimbra e o que nela se realçava era a desertificação da Baixa da cidade, quer sob o ponto de vista comercial, quer habitacional. Imediatamente ganhei consciência de que o problema não era de Coimbra, mas de todas as cidades de grande e média dimensão. As nossas cidades, sobretudo o chamado casco velho, estão moribundas. Claro que eu próprio o verifico nos centros urbanos da nossa região, e há muito tempo que o problema se me põe e no que diz respeito à vertente comercial, há anos que me pergunto o que é feito da classe comercial, patrões e empregados, como é possível que na altura própria, há dez anos atrás, essa classe, que até tinha força mobilizadora, se não mexeu, fez barulho, se manifestou ruidosamente para que se sustasse essa explosão de grandes espaços comerciais que, iludindo as multidões ciosas de coisas novas, se foram implantando nos arrabaldes das cidades, minando-lhes visceralmente a vida no que respeita ao comércio tradicional e ao que dele emana. O argumento de que se trata de potentados internacionais contra os quais nada se pode fazer, não me parece decisivo. A questão habitacional não é a mesma mas parece-se. É lamentável que tenham estado imperdoávelmente ausentes políticas de rendas e reconversão das zonas antigas. A Baixa do Porto, por exemplo, é de meter medo. Mas as outras nossas cidades vão pelo mesmo caminho. Lamento dos nossos Governantes de há 30 anos a esta parte, (é deles que especialmente exigimos) a falta de lucidez e de capacidade para seguirmos os nossos próprios caminhos. Limitamo-nos a copiar, mas copiar o que não interessa e nos vai atrofiar. Esses santuários do consumo, como com propriedade são designados, perturbam-me. Resquícios de atávico conservadorismo? Também eu entro neles às vezes (culpo as circunstâncias), e sinto-me ridículo a empurrar aqueles carrinhos enormes, carregados de coisas que são precisas mas também de coisas que nem são precisas. Aquele ambiente de sofreguidão, é a palavra, dá-me voltas ao estômago, sobretudo ao pensar nos estômagos de milhões a quem bem pouco toca para matarem a fome. Mas, como disse, também dou comigo mesmo a participar no espectáculo. Sim, é que o que este cenário me sugere, não é a abundância mas sim a fome.
Este é um tema - a fome - que me ocorre com frequência e então pergunto-me se ela é uma fatalidade de que a Humanidade não tem condições de se libertar, ou antes um problema que aqueles que mandam e muitos outros francamente não estão interessados em resolver. Para os que mandam o que importa é encher a barriga e os caprichos daqueles a quem governam e para isso não há limites, para salvaguarda do seu domínio futuro. Não é pois dos que mandam que vamos esperar medidas globais e capazes. Restam-nos aqueles que pensam e pensam em grande, só que por grande que seja o seu pensamento, não é fácil que ele tenha eco e se torne capaz de mudar o mundo. Mas como diz o poeta, é proibido desistir. É proibido baixar os braços.
Mas falar de sofreguidão no consumo é falar dessa sociedade em que o mundo Ocidental, o nosso, gravita e que sinceramente não é do meu agrado. Não é possível sentir-me identificado com uma sociedade que tem por objectivo absoluto o lucro desenfreado e por isso endeusa o dinheiro. Daí resulta uma perfeita lei da selva, em que uns tantos, os inteligentes, os que tiveram a grande oportunidade, exploram a multidão dos mais fracos. Poderão parecer empoladas as cores com que pinto o cenário, mas ele depara-se-nos nas nossas sociedades ditas ocidentais e civilizadas. Claro que as coisas atingem os limites da desvergonha e do não civismo se entramos em determinados feudos dessa escravizada África. Penso que na hora que passa cabe uma grande responsabilidade de âmbito global ao Mundo Ocidental em que obviamente se incluem os Estados Unidos e as sociedades ocidentalizadas, como o Japão e outros.
Da última vez que fui a um desses centros comerciais estava a decorrer uma campanha a favor do Banco Internacional contra a Fome. Não sei qual é a medida do mérito dos espaços comerciais nesta participação. Vamos admitir que existe uma réstia de merecimento aí. Onde ele existe de facto é naqueles, sobretudo chamam-me a atenção os jovens, que participam de uma forma concreta na campanha. Acontece que ver a juventude nesta missão me sugere diversas linhas de reflexão. É por exemplo aquilo a que chamaria o serviço cívico da juventude. De facto não entendo que uma vez eliminado o serviço militar obrigatório, não tenha sido criado imediatamente um tempo (talvez um meio ano) de serviços à Comunidade, de natureza muito diversificada, a começar por primeiros socorros de que somos, ia a dizer todos, uns ignorantes. Não se admite que numa situação de quase afogamento ou crise de qualquer ordem, não surja da multidão imediatamente um número de pessoas habilitadas a um socorro adequado. Esses serviços à Comunidade ou serviços cívicos, além de resolverem um problema que pode ser grave e pode bater à porta de cada um, tem a grande outra vantagem de acordar o jovem para o sentido comunitário, o sentido de que não estamos sós no Mundo. Os jovens que participaram na dita Campanha se calhar depressa ganharam essa consciência e de certeza que ficaram mais ricos com ela.
Ainda a propósito deste tipo de campanhas, e há grupos radicalmente contra, alegando que elas contribuem para a manutenção dos problemas que querem resolver. Não consigo defender esse ponto de vista, apesar de reconhecer nele uma ponta de lógica, mas apenas uma ponta. - E penso assim por que acho que de facto não existe, na minha opinião, uma forma de resolver radicalmente estes problemas. A sua resolução exige vontade, energia e mesmo violência, mas não deixará de ser uma caminhada, sob pena de vermos agravado o sofrimento à nossa volta. Vamos ser violentos, forçar as barreiras, mas não vamos entretanto deixar de fazer aquilo que mitiga o sofrimento de uns tantos.
Mas ainda a propósito de escândalos sociais, não poderia deixar de me referir à informação bem recente de que no nosso país existem cerca de quinhentas mil casas desabitadas. Nem sei que comentário isto mereça.
Fui hoje ao funeral da Célia – a Célinha das Casas – As Casas é o nome da quinta dos meus avós maternos, em Vila Chã – Amarante e a Célia era a minha prima mais velha, que sempre ali viveu. Tinha 82 anos, mas estou a vê-la pelos 25, 30, 40 anos, mulher da aldeia, simples, mas a esbanjar simpatia e jovialidade e sempre um toque de ironia ou uma ponta de malícia quando vinha a propósito. Estou a vê-la a entrar em nossa casa em Amarante, de cesto e rodilha à cabeça. Era presente que trazia para a madrinha, minha mãe. Corada que ela vinha mas risonha e feliz, depois de cinco quilómetros calcorreados, que nesse tempo não havia transportes para as aldeias. Por tudo o que ela era como pessoa e não esmoreceu muito com a velhice, a sua morte acordou em mim um mundo de recordações. A sua memória fica como um facho que encerra um núcleo de gerações que passaram por aquela casa da encantadora aldeia de Vila Chã do Marão.
As notícias que acabo de escutar na televisão fazem-me uma vez mais retroceder na temática. Sim, o que está em causa promete intrometer-se com frequência neste milhões de crianças, na Etiópia, que estão na eminência de morrerem de fome. Contraditório mundo este em que esbracejamos. Às vezes ainda dou comigo a interrogar-me, como quem tem dúvidas, se o humanismo dos homens acompanha a gesta da inteligência do mesmo homem que a um ritmo alucinante vem realizando coisas fabulosas. Umas vezes sinto sacudir-me uma onda de esperança, mas outras, uma rajada de decepção que não tem limites. Curiosamente no mesmo pacote de notícias foi informado que um Ferrari último grito teria sido estacionado, como brinde, na frente da casa de determinado cidadão, aliás figura respeitável do desporto nacional. Aqui está em causa apenas a evidência do contraste.
De facto o mais acertado (mais cómodo) será não dar ouvidos nem olhos à televisão. Imagine-se que na América acaba de ser inventada uma boneca que quase parece ser gente. Se não fosse o quase seria mesmo gente. Mas faltava-lhe o quase. Acontece que tamanha semelhança leva uma certa camada a adoptar essa boneca como se de um filho se trate. Este comportamento só tem uma tradução: Demência. Mas a propósito de contrastes neste reino das abundâncias e desabundâncias, não posso, neste recanto dos meus desabafos, deixar de me referir a esse escândalo que se ainda o não é de uma forma descarada, para lá parece caminhar a toda a brida. É a constatação a que uns tantos querem chegar de que os cereais, particularmente o arroz, constituem a melhor promessa para a resposta à escassez do petróleo. Quer dizer que aquilo que deveria ir para a boca dos humanos – estou a pensar nos milhões que têm fome – começa a ser encaminhado para a boca dos automóveis, feito para estes apetitoso e proteico alimento.
Como prometi, corro a todo o momento o risco de regressar a assuntos já abordados. É o que acaba de acontecer no que respeita a viagens. Não se tratou de um grande passeio. Foi simplesmente um raid por três cidades andaluzas que por algum motivo me fascinavam apesar de tangencialmente as conhecer. Trata-se de Sevilha, Córdova e Granada. Calculo que seja a própria história relacionada com a presença Árabe, vestígios ciganos e a própria música. Senti urgência em vê-las com olhos de ver. Assim foi há cerca de um mês. Não posso deixar aqui de destacar o Palácio de Alhambra e a Mesquita de Córdova e naturalmente toda a cidade de Sevilha. A respeito da Mesquita de Córdoba, da sua grandeza a todos os níveis, tenho de me referir a uma promessa feita a mim mesmo e que por lamentável incúria não cumpri e me ficou a pesar. Era o propósito que tinha de por alguns instantes depor as mãos sobre as pedras milenares da grandiosa Mesquita, numa atitude espiritual e humana e assim deixar o meu registo para a posteridade. Não o fiz por lamentável despiste meu, mas fico a acreditar que haja sempre uma próxima. Para muitos isto não passará de uma lamechice, qualquer coisa que não dá lá muito para entender. Mas aí é que eu acho que está muito da riqueza humana: vermos importância naquilo que parece não a ter. No que à minha sensibilidade diz respeito tocar as mãos naquilo que foi o trabalho de iguais a nós há trezentos ou quatrocentos anos, é de alguma maneira homenageá-los. Porventura pessoas que por cujas veias terá corrido sangue que tem que ver com o nosso. Este o meu ponto de vista, o meu sentir bem profundo. Mas mantenho que há riqueza na diversidade dos pontos de vista, das sensibilidades ou indiferenças. Ainda a propósito das abundâncias e desabundâncias, barrigas cheias e barrigas que dão horas, (e a minha enfileira nas primeiras), dou por vezes comigo a congeminar nessa matéria. Como é possível haver tamanho desequilíbrio e o que pode ser feito para lhe encontrar solução. A primeira reacção é a de quem se sente chocar com um Muro de Lamentações, junto do qual não resta mais do que um maior ou menor manancial de lágrimas. Num segundo considerando, porventura mais lúcido, ocorre-me que terá que haver resposta para o imbróglio. Nessa altura admito que talvez a Humanidade esteja nos alvores da resposta, que poderá ter o carácter mais pacífico, como o mais inaudito em termos de violência. Sim estou tentado a crer que vivemos um tempo de mudança de que talvez não haja registo na Historia. Para já e por enquanto é por uma dose mais ou menos suculenta de vaidade que regemos as nossas vidas, seja pelo carro que empunhamos, pelo casarão que habitamos, pela petulância física que a natureza, para nosso bem ou mal incrustou em nós, pela dose de inteligência de que ilusoriamente somos portadores, pela sobranceria com que, por força de qualquer desses ingredientes, nos comportamos perante os outros, julgando-nos acima. De entre esses ingredientes sinto-me tentado a uma vez mais destacar o automóvel, não pelo seu peso social, a que atrás me referi, nem tão pouco pela sua utilidade indiscutível, mas bem pelo contrário pelo que ele representa de dramático para a sociedade. Recordo-me do tempo, naturalmente de criança, em que um acidente de automóvel nos confins do país era assunto em todos os recantos deste nosso lusitano mundo. Toda a criatura ficava sensibilizada. É incrível o contraste, ouvi hoje (seis de Novembro) nas notícias que desde o princípio do ano tinham morrido nas nossas estradas 645 pessoas. O que me choca é que um drama desta natureza nem chega a ser objecto de conversa em qualquer tertúlia de café. Uma aceitação que tenho de considerar desumana, desrespeitosa das nossas vidas. Se mandasse impunha limites drásticos à velocidade. Sei que há muito quem veja tacanhez neste ponto de vista, mas estou disposto a encara-lo. É impossível continuar-se por este caminho. Acorde-se para o problema, que tem que ter solução.
Solidão. Às vezes, muitas vezes, confronto-me com a minha própria e libertar-me dela nem sempre é fácil. Nessas ocasiões chego por vezes a uma janela da minha casa e confronto-me com um mundo de cimento armado que não é mais do que uma fracção da nossa cidade, dentro do qual vivem ou vegetam milhares de pessoas. Sinto-me pertencer ao número dos que estão já na situação de reformados e interrogo-me sobre o que estão a ser as suas vidas. Pergunto-me então se a solidão é uma fatalidade na velhice ou um problema a que o homem não foi ainda capaz de dar resposta. Que num mundo de pessoas ainda activas, capazes, se não despolete uma dinâmica capaz de os colocar numa atitude de concretização de sonhos, de solidariedade, de convívio que ultrapasse e passe por cima das futebolísticas abordagens (salvaguardado sempre o respeito que essas abordagens naturalmente reclamam de nós). Claro que as criticas que faço tocam, quantas vezes a minha própria pessoa. Graças à televisão, quantas vezes me espanto com coisas que outros realizam e que de certeza os fazem sonhar todas as noites. Há tempos era um Espanhol que por sua conta e risco construía uma Catedral e já numa fase adiantada. Mais recentemente um apaixonado dos caminhos-de-ferro dava por terminada uma miniatura de uma máquina a vapor perfeitamente operacional. Isto meros exemplos ao nível das coisas que se fazem quase exclusivamente manuais. Mas existe um mundo de coisas importantes que exigem bem menos de nós, nomeadamente em termos de materiais e reduzidos custos
Apesar de tudo quero crer na esperança e é para ela que assesto as minhas armas.
Ao passar uma vista de olhos aos meus escritos concluo que terei tocado demasiado numa tecla que poderei chamar de moralista, sobretudo no que toca ao mundo do social, quero dizer, das nossas obrigações sociais, das carências profundas com que outros, muitos outros, se esbarram. Quero que fique claro que no que me diz respeito tenho consciência da insignificância do que fiz e das minhas responsabilidades em relação àquilo que me incumbiria. Assumo pois a minha pequenez a este respeito. Acho que acordei tarde para esta realidade e surpreendo-me com isso por achar que dentro de mim havia acesa desde sempre a chama de um razoável sentido de solidariedade. Só que não estaria tão acesa quanto seria de desejar. Mas será que esta minha reflexão sobre o assunto me veio de facto despertar mais para ele? Ou será que tudo não passa de mera retórica que esporadicamente vem ao de cima beber um trago da minha consciência. Há uma coisa que sinto evidente na minha cabeça: é a de que a nossa responsabilidade está na medida de uma infinidade de factores, uns a influenciar-nos nesta hora, outros a exercerem a sua acção a partir de registos que habitam o nosso passado distante.
Não, não é ainda desta feita que dou por encerrado o amontoado das minhas reflexões. Quero com isto dizer que existe na nossa cabeça, sempre um infinito de coisas merecedoras de serem abordadas e que evidentemente, já o foram mil uma vez por outros. Com este preâmbulo não quero mais do que chegar à essência, se isso é possível, de um desabafo que ontem mesmo um velho amigo teve comigo. Trata-se de uma pessoa que desde os dezasseis anos e durante quarenta viveu em terras de Argentina. A sua ânsia de viver de conhecer mundo, de conviver com estilos de vida diferentes dos seus, fê-lo pois ainda jovem ir em busca de novos mundos. Não se arrependeu, longe disso, da experiência feita. Pelo contrário, é hoje para si profundo factor de enriquecimento humano. Mas tudo tem um preço, por vezes um preço amargo. Registei com particular sensibilidade a alusão que fez à noite do seu décimo oitavo aniversário. Não tinha ainda naturalmente constituído família e circunstâncias diversas fizeram com que fosse na solidão de um restaurante prestigiado da capital Argentina que festejasse o seu aniversário. Não tinha ninguém consigo. Talvez uma estranha necessidade de estar só já que quem para si tinha verdadeiro significado estava longe. Depois de uns instantes de reflexão sobre algo que pudesse marcar esta data, lembrou-se festejá-la com um vinho da sua terra. Assim fez. O vinho era de renome e caro, mas naquela hora não teve preço para si. Não o bebeu de um trago. Pensou antes de o levar à boca, deixou que a sua mente vagueasse por um mundo de sentimentos que não são traduzíveis, e deixou que lhe entrasse na alma a consciência de que a terra que deu vida aquele vinho, foi afinal a mesma que o fez ser gente há dezoito anos, nesse distante e amado Douro. Foi-lhe deveras reconfortante sentir assim. O caso não diz respeito à minha pessoa mas acho que fui capaz de agarrar o espírito com que este amigo sorveu aquele precioso e remoto néctar.
Decerto porque não tive para com elas a atitude determinada de dentro das minhas possibilidades ter dado um contributo efectivo à resposta que reclamavam de mim, quer eu queira quer não, as questões sociais, aquelas que tem que ver com aquilo que é indispensável à subsistência humana, volta e meia estou a confrontar-me com elas, ou porque me ocorrem espontaneamente ou porque me sinto despertar para elas através dos meios de comunicação. Começo a chegar à conclusão de que se para isso tivesse estofo seriam matéria para intermináveis divagações. Mas como esse estofo não existe, limitar-me-ei a algumas vagas alusões, correndo o risco de não serem as mais lúcidas. Mas mais ou menos lúcidas, sinto em mim o estranho imperativo de a elas me referir. Mas bem mais do que isso aquilo que nesta hora mais me motiva não são as meras questões de subsistência de muitos, mas a mais do que séria questão da sobrevivência humana ou os incontornáveis conflitos que o actual mundo económico-financeiro é capaz de acarretar (estamos em Outubro de 2oo8). Se fosse dotado de dons premonitórios, que não serei, diria que estamos de facto no termo de uma Era. O que está a acontecer nessa estranha América, sobretudo no que respeita ao seu relacionamento com o resto do mundo, aos rasgos dominadores que a tem marcado através do tempo e que terão atingido um dos seus tristes picos nestes nossos dias, são para mim um preocupante sintoma. É evidente que o resto do mundo (um certo resto), de que não está alheada a civilizada Europa tem a sua quota-parte de responsabilidade na turbulência e desequilíbrios de que estamos a ser testemunhas. Acho que vivemos uma hora em que alguém tem algo de muito importante a fazer. Só que não sei quem seja esse alguém. Como já disse algures não me parece que sejam homens da governança a tomarem esse rasgo, já que o que lhes importa acima de tudo é o bem-estar material daqueles de quem podem esperar vantagens eleitorais. Dos especialistas na matéria, refiro-me aqui à matéria económica e à justiça social que se pretende associada a esta, não se vê que sejam tomadas posições lúcidas e em tempo oportuno através da palavra clara e convincente. Restam os pensadores e os homens do espírito, porque esses serão quem trás a maior dose de verdade dentro de si. Só não sei quais possam ser as suas armas, ou mais exactamente, o modo de as usar, por se tratar de homens de paz. Fica comigo a esperança.
Meu caro António,
ResponderEliminarAinda há pouco falamos pessoalmente e como parece ter-se perdido o comentário que aqui anotei há já algum tempo depois das quase duas horas que levei a ler esta crónica... venho apenas confirmar o agradecimento pela "sofreguidão" com que li alguns passos da tua juventude e algumas reflexões pertinentes que fazes. Continua e brinda-nos com pedaços soltos das tuas vivências no modo que tão coloquial como sabes fazê-lo. Porque não uma crónica semanal?
Um abraço do Albano