VIAGEM NO TEMPO
(Previsão para o ano 2060)
A nave desloca-se já a uma vertiginosa velocidade. É tripulada pelos astronautas Norberto Sá, Olímpio Marçal e Du-Bocage, todos especialistas que se complementam na ária das viagens espaciais, nomeadamente, no que diz respeito ao Norberto Sá , no tocante às promissoras descobertas das viagens no tempo, mas de que até ao momento não há conhecimento de experiências de vulto. Essa está nesta hora em curso na pequena nave que tripulamos. Descolamos há instantes do centro espacial de Alcochete. É visível entre nós uma boa dose de euforia mas também de ansiedade, apesar de confiantes no sucesso do empreendimento. Nesta altura trocamos impressões sobre a adaptação física e psíquica de cada um, tudo se mostrando em ordem, sendo certo que temos incorporado em nós um sistema de actuação de um sexto sentido (chamado de «Prévius») que nos permite prevenir e agir em situações de emergência ou inesperadas, com vertentes num factor de estabilidade e tranquilidade nossa.
A nave acaba de transpor o limiar do século XX, obviamente no sentido do passado, sendo o seu comportamento uma autentica simbiose entre o viajar no tempo e no espaço, com as implicações que isso trás a todos os níveis, mas previstas. É evidente que a estrada ou rota do passado tem um destaque especial. Acabamos de entrar em áreas de conflito que me interessam particularmente, a mim (Du Bocage), já que tenho a incumbência de toda a espécie de registos e ocorrências. Identificamos as guerras do Vietname e da Coreia e de imediato episódios da 2ª guerra mundial, não nos escapando o desembarque na Normandia, o combate do Pearl Harbur, a tomada de Paris e os termos em que esta cidade encarou a presença do inimigo.
Hitler e Estaline não escapam à nossa observação e não é difícil ver-se neles psicopatas de corpo inteiro.
Nesta data e graças ao mencionado sistema «Previus», vislumbramos na América num rancho Texano, um catraio de sacola às costas e calças à golfe entrar para um luxuoso carro que o conduziria à escola. Deu para entender que esse miúdo viria a conduzir de forma lastimável os destinos daquele país nos começos do terceiro milénio.
Fazemos a primeira paragem na região de Madrid já depois de finda a brutal guerra civil de Espanha. Para tal utilizamos meios técnicos adequados, nomeadamente os que permitem furtarmo-nos pessoalmente ou mesmo a própria nave à visibilidade de terceiros, através de um sofisticado processo de desmaterialização, que abrange as nossas próprias pessoas…
…Sobrevoada Toledo o aludido sexto sentido (Previus) sugere-nos uma pronta passagem por Lisboa, onde assistimos ao Regicídio e logo ao fim da Monarquia. Não perdemos tempo, já que este é medido ao milímetro, e pomo-nos na peugada do século XIX. Aqui presenciamos cenários de interesse a nível nacional, nomeadamente as Constituintes e a revolta da Maria da Fonte, a convenção de Évora-Monte e reconhecemos figuras de vulto sobretudo no campo das letras.
A nação Francesa e os acontecimentos que aí decorrem nos fins do século XVIII levam-nos a apontar a nave para aquele tempo e espaço. Como é fácil de entender as nossas deslocações são aleatórias, ora num sentido ora no outro, sem que isso tenha significado no nosso percurso que acima de tudo envolve não a área do Espaço, mas bem mais ambiciosa e significativa, a do Tempo. Isto para boa compreensão do nosso relato. É assim que assistimos à tomada da Bastilha, à decapitação dos reis de França e ao eclodir da revolução francesa e subsequentes campanhas Napoleónicas de que o nosso país não tardaria a sofrer consequências.
É por esta altura que nos confrontamos com algumas dificuldades devidas sobretudo à evolução do idioma Francês, desajustado àquele que aprendemos no nosso tempo. Mas lá fomos ultrapassando as situações designadamente em termos de vestuário, mas que não nos ilibou de um certo ridículo em diversas situações, chegando a privar-nos de contactos para evitarmos contratempos.
Nesta estada em Paris que se revestia de particular interesse, aconteceram imprevistos, alguns a roçarem o picaresco. Acontecia por vezes algum de nós esquecer-se de desligar o sistema de desmaterialização, o que o colocava numa situação de invisibilidade, para aqueles com quem se cruzava. Foi assim que quando atravessávamos o Pigalle, o Norberto apanhar um grande encontrão de um cavalheiro que vinha em sentido contrário e que se mostrou deveras confuso por não ver o que é que o tenha abalroado , mas lá seguiu o seu caminho a vociferar, a interrogar-se, decerto com os seus fantasmas. Situações como esta foram de resto frequentes e até desconcertantes, e de que francamente tiramos todo o partido.
Por esta altura, visionando a curta distancia o reinado de Luís XV, concordamos não ser prudente mais este pequeno salto no sentido do passado.
Todos os recursos e nomeadamente combustível nuclear aconselham ao regresso, uma vez que um contratempo desta natureza poderia implicar uma paragem sem retorno, de que podemos imaginar as consequências: uma morte lenta no Espaço…
Visitada uma vez mais Paris e respigando o ambiente da época (vão lá mais de 200 anos), apontamos a nave no sentido da península Ibérica e portanto do nosso País. Como a velocidade é vertigem e há uma serie de acontecimentos que decorrem na mesma época (fins do século XVIII) depressa sobrevoamos Lisboa poisando na deserta área de Monsanto para mais garantido despiste.
Por esta ocasião governa o nosso País o rei D. José e nós, através do sistema «previus», já referenciado, apercebemo-nos de que acontecimentos de vulto vão passar-se, sobretudo na região da capital. É assim que assistimos à elevação da chamada «Passarola» no Terreiro do Paço por artes do padre Bartolomeu de Gusmão. É um acontecimento digno de ver-se. Para nós coisa absolutamente primitiva, claro. A nossa preocupação, como homens dos meados do século XXI em despistarmos a nossa aparência, sobretudo o nosso linguajar que, decorridos quase 300 anos, apresenta notórias diferenças, é grande, aconselhando-nos a sermos sóbrios no nosso falar, apesar de estarmos razoavelmente preparados.
Não tarda que na região de Lisboa ocorra uma tragédia de enormes dimensões, de que somos testemunhas, justamente o terramoto de 1755 e o consequente maremoto, que de resto prevíramos com alguma antecedência não no pormenor nem na natureza exacta do fenómeno a acontecer. Sim na sua devastação, mas aspecto em relação ao qual não tínhamos maneira de tomar quaisquer providências. A nós, lamentavelmente, restava-nos aguardar os acontecimentos.
Quem na prática governa os destinos do país deste tempo é o chamado Marquês de Pombal, homem da total confiança do rei, de aguçada inteligência e poder de iniciativa. Imediatamente após o terramoto providencia pelo restauro da sacrificada Lisboa com a abertura de novas vias, de amplas dimensões e mesmo arrojadas para a época. Para além disso toma iniciativas de vulto, algumas polémicas. Determina a abolição da escravatura na Metrópole e pelo termo da inquisição que virá a concretizar-se em definitivo alguns anos mais tarde. A morte dos Távoras por determinação real, é-lhe atribuída de um modo especial, facto que é objecto de surdos comentários.
O nosso encontro pessoal com aquele ilustre homem de Estado, por muitos tido como déspota, faz parte dos nossos planos, pelo que não perdemos tempo na medida do possível em concretizá-lo.
Como em recente conversa havida entre nós fora sugerida a tentativa de um encontro pessoal com o poeta desta época Barbosa Du Bocage sugestão que despertara uma incontida euforia na minha própria pessoa, ( remoto descendente indirecto e francamente orgulhoso daquele poeta) eu mesmo, discretamente, recordo esse propósito, que é compreendido e aceite com entusiasmo pelos meus companheiros. O problema estará em conseguir-se a anuência de ambas as figuras, ambas de vulto, mas de posição social radicalmente diversa. Não imaginamos em que conta Bocage é tido pelo Marquês, dado o seu tipo de pessoa e a natureza polémica dos seus escritos. Todos sentimos de antemão o interesse num encontro com aquelas duas figuras de nomeada da Lisboa do século XVIII. Depois de várias diligências que não foram fáceis, conseguimos aprazar esse encontro, que vem a concretizar-se no Café Nicolas…
A cedência do Marquês de Pombal exigiu muita diplomacia, mas que soubemos usar. Durante o encontro a nossa maior preocupação reside no uso do Português. Bocage, o nosso grande poeta, mostra-se despistado em relação ao problema, não lhe dando importância, mas o Marquês de vez em quando arregala os olhos e aguçando o ouvido pede para repetirmos esta e aquela palavra, mas acabando por mostrar estranheza em relação à nossa pronuncia, justificamos com o facto de sermos homens da região do Douro, todos com vastas explorações do vinho do Porto, actividade de particular agrado do Marquês. Será pois natural – sublinha Norberto – que o nosso sotaque seja portanto provinciano. Parece-nos aceite a justificação, a que Bocage corresponde com um dito jocoso, mal entendido por nós, mas logo seguido de duas quadras do seu particular agrado:
Da triste Inês , inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;
Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náides carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:
Todos ficamos em respeito ante este espasmo poético. O Marquês acena com a cabeça numa atitude de apreço, no que me diz respeito, pessoalmente, tenho dificuldade em conter a minha emoção defronte daquele meu antepassado, de quem naturalmente ocultei o meu sobrenome. Não me parece oportuno que ele sonhe com tal realidade, apesar de ser essa a vontade dos meus colegas. Decorre animada a cavaqueira, apesar de serem escassas embora bem-humoradas as palavras do poeta. A situação torna-se comprometedora no momento em que depois de um silêncio, o nosso Elmano Sadino na sequência de um comentário relacionado com as suas andanças pelo Oriente, arranca imprevistamente com outro verso, bem menos apropriado:
Sanhudo inexorável Despotismo,
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do Ateísmo;
Fica-se por este verso que nos deixa, a olharmo-nos de soslaio, enquanto que o Marquês se mostra agastado com o rasgo poético de tom satírico do poeta, por admitir que possa dizer-lhe respeito. Com a mão trémula pega no copo nem ele sabe bem se é com intuito de beber, pois limita-se a comentar também com voz trémula e num tom de quem está com alguma pressa: - o que neste momento me apetece dizer é que as portas do Limoeiro continuam abertas, não só para se sair, mas sobretudo para entrar ou voltar a entrar… - levantando-se alega urgência pessoal em se ausentar deixando-nos a promessa de um posterior encontro, mas possivelmente limitado em relação às pessoas, despedindo-se de nós circunspecto, mas ignorando o poeta, que não se mostrou minimamente perturbado.
Ao sair do Nicola o Marquês volta-se para trás para uma última palavra connosco, só que Norberto tinha accionado o sistema de desmaterialização logo após a despedida, pelo que, para surpresa e espanto do Marquês e também do poeta não enxergaram as nossas pessoas, facto para eles mais do que desconcertante, mesmo absurdo, já que não houve tempo para, em circunstancias normais nos termos afastado.
Na cabeça do Marquês ficou a regurgitar uma estranheza a roçar o medo, que ele não conteve e manifestou, apesar de tudo ao nosso poeta que, como ele, estava com os olhos esbugalhados. Esta circunstância inesperada e mesmo insólita fez com que o mal entendido se diluísse ao ponto de o Marquês pedir com aparente naturalidade a Bocage que o acompanhasse, até porque era já noite. À porta do palácio, quando iam para se despedir já quase como dois amigos (esquecido o incidente), ambos se apercebem de que uma luz, semelhante a uma estrela, mas mais intensa, sobrevoa numa vertigem a cidade, fenómeno que volta a acontecer instantes depois no sentido inverso.
Ambos deitam as mãos à cabeça extremamente intrigados e como é já tarde, o Marquês não tem coragem de mandar o pobre poeta para o convento sozinho, pelo que lhe oferece dormida no palácio. 0 poeta reflecte por instantes, mas acaba por se encher de coragem e tomar o caminho do convento onde está instalado, tranquilo já no que concerne a eventual despotismo por parte do Marquês. Caminha de punhos cerrados, como para esconjurar o mau presságio de tudo o que sucedera nesta noite e que culmina com uma desconcertante estrela capaz de rasgar os céus de Lisboa. Desconhecem os dois antagónicos alfacinhas o grave incidente que está a acontecer e que tem que ver com a dita misteriosa luz. É que por falha humana do nosso colega e primeiro piloto Norberto, a nave desviou-se inesperadamente da estrada do Tempo o que a colocou num total descontrole, por assim dizer numa rota de sentido contrario ao que seria normal.
Por esta altura é recebida na base espacial de Alcochete, aonde um numeroso grupo de pessoas (familiares e técnicos espaciais) aguardam ansiosamente a descida da nave e consequente fim da aventura, uma mensagem preocupante em que Du Bocage dá, em breves palavras, conta da situação, ao mesmo tempo que transmite nervosamente o texto de todos os registos feitos na viagem, para conhecimento futuro. A mensagem resume-se nestas breves e preocupantes palavras: incrivelmente não conseguimos descortinar como, acabamos de nos perder na estrada do tempo. Que fique bem ciente, não está em causa o espaço, os caminhos do espaço, mas a desconcertante estrada do tempo. A situação é preocupante. Muito difícil recuperarmos a nossa rota. Rezamos porque isso aconteça.
Segundos após o termo desta mensagem patética é avistada sobre a base espacial uma luz intensa que se aproxima, ao mesmo tempo que é renovado o contacto de Du Bocage informando com incontida euforia o facto de no último instante ter sido retomada a estrada espacial correcta.
Du Bocage acrescenta, que a correcção na rota da nave correspondeu a uma entrada imprevista e genial em plena auto-estrada do tempo, com um solavanco quase imperceptível. Acrescentou finalmente: «a entrada nesta auto-estrada correspondeu a uma vertigem em termos de deslocação no tempo, pelo que foi num ápice que transpusemos todo o século XIX e XX. Há um pormenor que nos deixou pena: tínhamos previsto um espectáculo singular para meados do século XIX, justamente uma exibição da Severa na própria casa onde nasceu, na Rua do Capelão. Claro, não foi possível, ficará para uma próxima oportunidade…»
Há uma alegria incontida no grupo de pessoas que aguardam com ansiedade o termo glorioso desta viagem Trans-Tempo, que fica para a história.
Antonius
Incrível descrição, ficção rica e suprema esta imaginária viagem no tempo. Se fosse possível, o que encontraríamos? E no que nos diz respeito, será que alteraríamos alguma coisa?
ResponderEliminarParabéns por mais este belo trecho.
Albano