Pensamento...

A vida é uma janela que se abre no sem fim do Tempo.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Sou Filho De Um Sonho




Não, não mates os sonhos que há em mim
Não ouses derrubar aquele que sou
Pondera o gesto ameaçador
Aquele que oculta, que esconde
O punho cerrado, demolidor.
Não mates os sonhos que há em mim
Que eles são do tamanho do mundo
Espiral que não tem termo
E sítio ermo não busca, cobarde.
Olha-me nos olhos mas sem trave
Lê meus pensamentos sem alarde
Ausculta-me se fores capaz.
Atenta que sou filho de um sonho
Um sonho que foi grande
A conceder-me dignidade
Para que seja aquele que sou.
Não, não mates o meu sonhar

Antonius



Será que ainda é Natal


O natal é saudade
Júbilo de remota infância
De que o tempo
Esse fazedor de lembranças
Se fez inusitado portador.
Exorcizando os meus temores
Na velha cozinha ouso entrar
E dos sessenta anos decorridos
Chegam até mim inefáveis
Natalícios odores
Enquanto na lareira o fogo crepita
A chaminé é a do menino Jesus
Que há muito, abusivo,
O pai natal do seu trono depôs
O presépio adivinho-o no mesmo sitio de outrora
Ouço as vozes de antigamente
Sinto o natal no recôndito da alma
Naquilo que passou, naqueles que já não estão
Vertigem é este terno sentir
Que a verdade que de mim se apodera
Não passa hoje de quimera
De frenesi, consumidor bulício
Perdeu o espírito, coisificou-se
Será que entretanto o homem cresceu
Para que ainda haja Natal?

Antonius



segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

QUANDO UM HOMEM SONHA



Amar é mergulhar no sonho inefável onde moram os Deuses. É transpor a linha do horizonte de onde se vislumbra um além que está fora do nosso alcance.
Amar é imaginar-te para além da túnica de cetim que separa o teu corpo dos meus olhos em ânsia. É ver não te vendo porque é mais adivinhar-te. É quase ultrapassar a linha da vida mas é finalmente, subtil, pé ante pé, no silêncio da noite, tocar-te, afagar-te, perder-me em ti, deixar-me afogar nos teus encantos. Amar-te é guardar-te em mim para uma posteridade que não tem limites.

ETERNO RETORNO



















Anda, dá-me a tua mão

Faz exultar meu coração

Com o teu calor de há muito.

Anda, afasta o tempo

Antes que o tempo

Se faça hercúlea muralha

Acorda, faz deste momento

Esse outro remoto instante

Que cavalga no oposto.

Anda, escuta a minha prece

Olha que o amor não fenece

E esse calor que eu senti

Amorosamente

Queima-me ainda as mãos.

Antonius

CORCEL PACIFICADOR


Desavindo tem estado o tempo
Canícula, chuva, granizo a granel
Incontornável a força do vento
Tremida a própria torre de Babel

Nos céus desta terra há turbulência
Insegura a nave no Espaço
Nunca vista tanta inclemência
Que o bom senso mostra-se escasso

A nave poderosa vai lotada
Atirada aos céus com eficácia
Mas de tal modo na borrasca enleada
Que dela se exalam ventos de «desgracia»

Entretanto o bom senso se anuncia
Dando mostras de serenidade
À tomada de confiança se alia
A retoma da sabia verdade

Serenada a torre de Babel
Desliza tranquila a nave no Espaço
Apesar da borrasca ter sido a granel
A vontade do homem em brioso corcel
É portadora de pacificador laço.

Antonius

NOITES DA MINHA TERRA



Apetece-me ir às noites da minha terra, ver a lua e o tremular das estrelas, algumas que pelos vistos não existem já. (Isto de eu ver uma coisa que não existe faz-me confusão). Gosto de ver aquelas muito escassas luzes descerem a montanha da banda de lá do rio (era um ou outro carro na estrada da Lixa).
Como fico deslumbrado ao pegar no meu candeeiro a petróleo e recolher-me ao meu quarto – levava comigo a luz preciosa que me alumiava e ajudava a estudar a lição do dia seguinte.
Como, vendo já mal, eu via na noite e me conduzia sem apêndices nascidos da inteligência humana. Esta não era precisa, bastava-lhe uma réstia para que o essencial acontecesse, os filhos se fizessem e nada obstasse a que os bacorinhos nascessem, as aves chilreassem e as arvores crescessem indiferentes à quietude da noite.

A esta hora não há mulheres a catarem os piolhos à porta de casa. A propósito: dizem que estes parasitas têm um pénis monumental (para o seu tamanho, é claro).

Noutro dia o Zé Melro, que já tem catorze anos, disse-me ao ouvido: a tua vizinha Esmeralda é boa como milho. Hoje depois do jantar ela foi a nossa casa falar do seu exame. A minha mãe fez um comentário simpático, porque ela ia bem arreada, com meias de nylon e sapatos de tacão. Sentada na nossa preguiceira, a certa altura cruza as pernas, ao mesmo tempo que lhe sinto o roçar, que me fez estremecer. Não entendi logo o que se passou comigo mas que me recordou aquele comentário do Zé Melro. Então estremeci mesmo e a partir desse dia também eu fiquei ciente de que a Esmeralda era mesmo boa.

Nesta noite está acontecer um milagre na minha casa. Aquilo a que chamam rádio está a dar música que eu nunca ouvi e noticias, que são da guerra. Ninguém na aldeia tem um aparelho destes e que, pelo que diz o meu pai, só funciona graças a um fio que o liga à bateria do carro. Não sei como é que a música e as notícias correm por aquele fio. Este mundo deve estar doido.

Na hora de deitar chego à janela e na escuridão total distingo a linha que separa o céu das montanhas do Marão. Ao atentar nela recordo-me de que foi a minha avó Deolinda que uma noite me chamou a atenção para esta linha e me fez olhar a lua com olhos de ver. Recordo esse tempo com saudade e ao lembrar-me da velhinha da minha avó, fico a perguntar-me, com um sentir quase sacrílego, sobre se também ela algum dia despertou em algum rapaz do seu tempo sentimentos como os que acordaram hoje em mim para a Esmeralda. Claro que sim. Mas … eu acho que esta noite vou sonhar com a Esmeralda.


AQUELA NOITE

AQUELA NOITE

Ela vem ai eu sei
Não são os olhos do corpo que mo dizem
Mas aos da mente não passa indiferente
Ela vem ai, a noite
Sinistra impiedosa impante
Investida de poderes régios
Passo sereno, compassado
Mas cônscio determinado
Traz contrastante um camafeu na lapela
É verde esmeralda
Em contra-ponto com a túnica
Da cor da negritude
Por detrás do seu busto, deveras ténue
Um luzeiro se vislumbra
Como a forçar para a penumbra
Dantesca figura
Da noite que se adivinha.
Não, não é a noite de todos os dias
Não vem engalanada
Com constelações
Nem sete strelo nem Orion
Não deixa entrever a via láctea
E não trás lua que dê luar
De rotunda escuridão feita mar
É noite que não tem retorno
Que não reconsidera
Portadora de felina alma
Implacável fera
É a noite que se avizinha.


Antonius

A OUTRA METADE DE MIM























Tu és aquela que me apascenta
E mata a sede que há em mim
Tu és primícia, etéreo enlevo
Fonte primeira do ser
És cascata densa, em vertigem
Que se esconde nos mistérios da montanha.
Tu és o sonho que me acalenta
Mas às vezes desperta, enfim…
Áurea fonte que me dessedenta
Cristalina, nata nas profundas da terra
E emerge em tufos de alecrim
Tu és aquela que me arrebatas
No lusco-fusco da aurora
Epiderme da ternura que me envolve
Envolta em túnica de cetim
És lírio da montanha
Terra que o homem já não amanha
Apenas porque és
A outra metade de mim.

Antonius

MERGULHO INTROSPECTIVO

MERGULHO INTROSPECTIVO



Às vezes preciso de ir ao fundo de mim, apesar de antemão saber que nunca logro esse objectivo. A dada altura uma estranha névoa estorva-me de ver. Mas o mergulho ai vai, empurrado por uma rajada de confiança em mim.
Ao fim e ao cabo eu quero respostas, as definitivas e, com a névoa na minha frente, o mais profundo que consigo descortinar mora entre Deus e o Absurdo. Via de regra esbarro com uma corda bamba: se Deus existe, repulsa-me o Absurdo; se não existe, tolero-o.
Se o Absurdo se me evidência esvai-se-me a percepção de Deus. Feitas as contas, ou Deus ou o Absurdo.
Mas se o Absurdo existe, na minha cabeça não cabe Deus. Mas com ou sem absurdo, apesar de tudo, Deus impõem-se-me, e vivencia-se-me.
Apesar do Absurdo que possa estorvar-me de apreender Deus, aí eu não estou com contemplações. Impõem-se-me definitivamente mais a necessidade de Deus do que o absurdo do Absurdo.
Rajada pretensamente introspectiva, com pleno respeito por quem pense de forma diversa.

Lucius Antonius

domingo, 19 de dezembro de 2010

Carta - Desafio de Amizade [Onix - LuciusAntonius]




Carta de Amizade da autoria de Onix
(Dimensão XIX Amizade) - Clique aqui


Resposta - Comentário de LuciusAntonius


"Querida amiga
A ti a quem não conheço mas com quem sinto necessidade de comunicar neste momento, decerto porque conheço já alguma coisa, talvez bastante coisa da pessoa que és e que tenho colhido em escritos teus só por si, as considerações de que tenho sido testemunha, falam-me de uma mulher que não está distraída nos passos que dá, no mundo em que vive, naquilo que os seus ouvidos ouvem mas, ouso dizê-lo, daquilo que os teus olhos vêm. Mas bem mais do que isso, naquilo que a tua mente pensa, nos limites aonde ela chega.
A tua carta foi um desafio, que não considero comum. Comum seria uma abordagem sobre o Mourinho ou o Cristiano Ronaldo. Dá a impressão de que eu percebo de futebol, aliás não é proibido perceber-se, mas o pouco que eu percebi há muito tempo, foi-se desvanecendo. Daí me é estimulante falar com alguém de quem me sinto tentado a ser amigo sem entrar naqueles meandros. Estou a achar imensa graça e ao mesmo tempo a sentir seriedade e importância a esta tentativa, única para mim, de abordagem. Gostaria de como condor, elevar-me a altos voos, às latitudes que são as tuas. Esse complexo quase me inibiu de responder à tua carta mas, repensando, considerei que não era fundamental. Podemos ser sofríveis na nossa capacidade de comunicar e no entanto existir um lampejo de inteligência que justifica a comunicação. Devo dizer-te que gosto das palavras e das esculturas que com elas se fazem mas, se me fosse exigida a opção, eu poria em primeiro lugar a música e, já agora, a titulo de sugestão, uma peça que transporto desde a minha adolescência, quando fazia parte de um Orfeão. Refiro-me aos «Barqueiros do Volga» seria interessante que tivesses a interpretação que eu possuo. Mas eu estou a adiantar-me. Quem pode falar de preferências em música, sugerir melodia? É um mundo tão subjectivo! Mas afinal estimada amiga há tanto para dizer, tanto sobre que divagar. Neste instante sinto vir ao de cima de novo o complexo do plano em que decorrem as minhas considerações, tão modesto em confronto com o teu. Para terminar e porque é importante quero dizer-te que a amizade considero-a algo sem preço e que tenho a felicidade de amar. Acho que abusei da tua paciência e certamente fui rasteiro nos meus considerandos. Mas esta vida reclama de nós alguma ousadia e foi essa que consegui arrebanhar de mim no momento em que decidi escrever-te. Aceita a amizade deste estranho mas que tem razões para te apreciar.

(De um homem, para uma Mulher amiga )

Um abraço
Antonius"





Resposta - Comentário de Onix
"Antes de mais, agradeço. Imensamente agradecida pela sua comunicação, que me entrou como ponto certeiro, num Domingo de sol, de praia e de mar. Uma missiva que veio de alguém com a imensa capacidade de doar-se até ao limite, sendo que, considero que não há limite para qualquer forma de dizer-se e ser-se, e doar-se quando a génese é, sempre lá esteve e nunca se esvai. Simplesmente É, um conjunto de várias formas moldadas a nosso jeito. Tal como o homem molda o barro com as mãos, os nossos sentidos moldam as formas, formando um conjunto de emoções que nos faz ir longe. Tal como o voo do condor, assim eu me sinto, levitando na sua sombra até ao limite que ele me impuser, mas sempre tentando criar mais e mais limites, até atingir um estado que não pode ser medido por qualquer ponto na altura. (Será sempre desajustada ao soalho esgaço onde danço, e me enlaço, e me refaço). Por isso deixo-o voar alto e vou até ao ponto, onde encontro o meu voo, aquele que me direccione em sentido inverso, ao encontro de uma atmosfera que me faça respirar de novo e dizer que quero, mas quero muito elevar-me à plenitude de todos os seres que comigo queiram respirar.

Há nessa sua vontade, uma vontade minha, um querer demasiado, um sentir que me leve para longe, estando perto. Foi sempre essa, uma força minha de me encontrar em palavras que me são familiares, que me digam - fica, para comigo dançares a melodia intrínseca ao nosso caminhar. Há nas pontas dos nossos dedos um toque sereno, para que ao levantarmos um dedo, os outros o sigam em silêncio. Melodias de um corpo pronto para dançar e se enlevar, através do toque, e também de tons vários em sintonia com o mundo que somos. Preparar os ouvidos para esse exercício, quando as melodias nos entram e as deixamos penetrar-nos, sentindo a força do mar, trazendo-nos ondulações em vários tons, cores e sabores, é deitar-nos na areia, dançar, e deixar o corpo seguir até passar a linha do horizonte. Um corpo deitado na areia a dançar: primeiro balançando as pernas e com os pés desenhando pautas de música na areia; segundo oscilando o tronco, desenhando melodias num espaço aberto a quem lhe quiser tocar; terceiro, levantar os braços e desenhar no céu, um conjunto de versos; de letras prontas para nos levantar, e por último, com os dedos pentear os cabelos e decifrar-lhes as cordas de uma guitarra, viola, bandolim ou violino, e com elas tocar, até que as ondas do mar, afinem as cordas vocais atingindo por fim, um estado emergente, que nos faça alcançar todos os tons. Mergulhar no mar e sentir que a água que nos molha o corpo, molda-nos também a alma, pronta para perceber, que quando o sol se for, as cores ficaram através de uma escala maior, que toca a par com as cores do arco iris, São sete, assim como sete os ciclos que nos fazem ir, sem parar para depois regressar.

Penso que agora sou eu que estou aqui a pensar, ao perceber que está aí alguém pronto para me dar o imenso prazer de o ver melhor, de o sentir através de uma comunicação mar adentro, para comigo dançar uma ondulação diferente, onde as palavras sejam as notas musicais para uma melodia, onde os sentidos estejam alerta. Fui ouvi-lo nos seus “Barqueiros de Volga” e vi-me consigo a duas vozes, se eu tivesse ainda voz para o alcançar e olhos para o poder visitar “sem entrar por meandros”. Irei tentar. Prometo estar atenta ao seu pensar, à sua forma de comunicar, que por sinal, veio na hora certa. Sempre que penso em ir-me para perto do mar, ouvi-lo nos seus profundos sinais, alguém me diz: Vai mas volta porque aqui há mais, muito mais para ouvires, sempre que te deites sobre as palavras e lhes dês formas, alterando-lhes as formas iniciais.


(De uma mulher, para um Homem amigo)



Onix"

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

QUANDO AS MÃOS SÃO ROSAS

 QUANDO MÃOS SÃO ROSAS


 
A natureza foi pródiga para contigo
Deu-te coisas que são rosas
Baixelas preciosas
Que proliferam entre espinhos
A natureza dotou-te
Com coisas mimosas
Feitas pedaços de ti
Que te conferem
Os poderes
De ouvir, ver e falar
De rir, chorar e até cantar
De ser feliz e amar
Enfim
Semeou rosas no teu jardim
Mas a natureza deu-te mais
Por ventura
Prosaicas aparentes coisas
Deu-te mãos
Imaginem mãos
Com estranhas protuberâncias
De uma maleabilidade infinita
Prodigiosas mãos te deu
Fontes de carícia sem fim
Tornadas também
Rosas do teu jardim
Porque capazes de realizarem
Coisas que nunca sonhaste
Coisas que há muito esqueceste    
Coisas para que já te não sobejou o tempo
Mas agora novos trunfos
Que te enchem os olhos de surpresa
Aos outros encantam
E me fazem acreditar
Que com as próprias mãos nós podemos
É nos dado o direito de sonhar.

Antónius

PARA TI

PARA TI
O amor com que te amo é lendário
É diamante, não sonhado privilégio
É sede que quero ter, é lampadário
É fogo que arde em mim em sortilégio

O amor com que te quero foi já sonhado
Num misto de rubis e ouro puro
É vaso de cristal inacabado
Dos sonhos o maior que eu auguro

O amor com que te amo é sol nascente
Telúrica erupção dos amores de amante
É fome que quero ter, fome inclemente
É esquecer-me de mim em sonho galante

O amor com que te amo é loucura
É desnorte, alienação
Mas no enlevo da ternura
A mais fogosa e ardente canção.

Antonius

OS MEUS PASSOS

OS MEUS PASSOS

Anelo os meus passos
Pétalas do meu caminho
Lírios do tempo que foi o meu
Que percorri
De nobre intento uns
Outros tantos em descaminho
Ora célere ora de mansinho
Levado por razões mil
Necessidades tantas
Sonho sem medida
Brandos motivos alguns
Gélidas razões outros
Mas passos que foram os meus
Fizeram o ser que sou
O eu que mora dentro de mim
E às vezes extravasa.
Sim, anelo os passos que dei
Por ventura fora de compasso, alguns
Inoportunos outros
Outros ainda de escolhos infestados
Mas passos que foram os meus
Por isso lhes quero
Cúmplices do meu caminhar
De alguma forma
Fazendo parte de mim
Como lhes não hei-de ser grato
Venerá-los no meu trato
Sem eles
Não teria ido aonde fui
Não iria aonde vou
Não estaria aonde estou
Definitivamente
Não seria aquele que sou

Antonius

ONTENS QUE FORAM MEUS

ONTENS QUE FORAM MEUS

Eu cá por mim sou feito de ontens. Pelo menos é a conclusão a que chego se me debruço sobre o problema, sobre em que marcenaria fui feito e quais os artificies. A hipótese de ser feito de hojes acho que não se põe, porque não deu tempo. Os amanhãs estão ainda  para acontecer, se acontecerem. Por isso nem sei se me dizem respeito. Respeito dizem-me os ontens, o que eu fiz, o que eu não fiz, o que eu quis fazer, o que não quis fazer, o que gostei e até degustei, o que não gostei, a mulher que amei e até a que desamei. Ontens de encanto ou de dor estão nos muitos que eu pensei, naqueles outros tantos que sonhei, nos pobres que não esmolei, naqueles para quem fui pródigo, nas crianças que me inspiraram ternura, nas mulheres que acordaram em mim indizíveis sedes que irradiavam de olhos cor de mel, de seios que se impunham ao olhar mais distraído, de ancas cinzeladas por carismático escultor, por ventura a sugerirem preciosos bordões de nem sonhados Stradivarius. Mas não pode ficar-se por aqui o meu pensar. Não se pode ficar pelos êxtases que os houve. Se houver amanhãs, que haja neles deslumbramentos, tenho mesmo o dever de os agarrar. Desejaria, sonho por aí, tenho obrigação de lutar por esses hipotéticos amanhãs onde se extinga a demagogia e a injustiça e impere em todas as dimensões a Humanidade. Sejam assim os amanhãs do meu sonhar de hoje.

Antonius

O TEMPO

O TEMPO


 
            Não há criatura humana que o não tenha desejado em algum instante da sua vida, fosse qual fosse o pendor – mais material ou menos – das suas motivações.
            De facto, por muito que o quisesse, ninguém até hoje logrou “agarrar” essa coisa que é o tempo.
            Se por desvairado que ande , é possível deter o passo do vento ou orientar-lhe a fúria, o mesmo não sucede com o Tempo. Esse, esvai-se-lhe lesto por entre os dedos. Nem o sofisticado da técnica se atreveu a desviar ou alterar o ritmo do Tempo, nem na cabeça do sábio coube ainda semelhante projecto.
            O Tempo é inexorável como a morte. Talvez a única coisa que lhe é igual na fatalidade. Um acontece no preciso momento em que tem de acontecer. O outro, subtil, dissimulado, passa, passa imparável. Ambos implacáveis. Cúmplices, são complementares na sua função. Um é o caminho que leva ao outro.
            É no Tempo que tudo acontece. A Vida, a Alegria; o Sofrimento e a Morte. O próprio Amor acontece no Tempo e mais do que em nada ele é vertigem. Se na dor o Tempo quase pára, na felicidade ele é relâmpago.
            Demasiado importante – apesar dos maus humores – para que seja desperdiçado, ele é malbaratado de mil e uma maneiras. Quantas vezes, julgando que o vivemos, o estamos a destruir. Só que ele não se comove, e prossegue imparável o seu caminho.
            Se, em princípio e com lógica, é a actividade que sugere a real vivência do Tempo, muitas vezes tal não passa de enganadora miragem. Acontece quando nos deixamos enlear e aturdir pelo frenesi coisificante que, se nos traz vantagens de alguma ordem, nos esvazia o espírito.
            Por isso é que, se em principio é a actividade a mentora do correcto enchimento do Tempo, não deixa de ser imperiosa a necessidade da paragem no Tempo – paragem dinâmica, retemperadora – capaz de nortear e legitimar essa actividade. É aí que o homem, se não agarra o Tempo, consegue viajar nele por enriquecedores instantes.
            Como tudo o que, com desespero nosso, nos escapa, também o Tempo é tema aliciante para quem ousou interpelá-lo alguma vez na sua caminhada veloz.
            Viver é acompanhar o Tempo por algum tempo. Talvez seja crime entrar e sair do Tempo sem arranjar tempo para com o Tempo dialogar.

Antonius

O PESO DAS PALAVRAS

O PESO DAS PALAVRAS
Com palavras me expresso
Com palavras digo o que sinto
Às vezes o que não sinto
Com palavras às vezes minto
Porque se disser que não minto, minto
Com palavras digo quem sou
Com elas vou às profundas de mim
Interpelando a minha verdade
Ao recôndito de mim me apresto
Na palavra que pode não ser
Mais do que coisa pensada.
Com algum talento ou sem ele tratada
Que ninguém me diga
Que a palavra é inócua
Porque é indolor e não tem gosto.
A palavra muitas vezes cura
Ela é sadia, oportuna, ela é amorosa
Portadora do bem-querer, da amizade
Da alegria e da verdade
Mas a palavra pode ser rotundamente venal
E se fisicamente não provoca dor
Ela muitas vezes fere, faz mal
Vergasta a alma, faz sangue
A palavra às vezes é mortal

As palavras, não as leva o vento.
Porque é o espírito que as dita
Deveriam ser de mansidão
Mas nem sempre o bom senso as inspira
É que quando insidiosas
Elas não são mais do que
A lava rubra, escaldante, de um vulcão.

Antonius

NUVEM SONHADORA

NUVEM SONHADORA

Como te invejo nuvem altaneira
Que caminhas suave no teu deslizar
Do peregrino matizada vieira
És sombra esquecida, fresta de luar.


Como te invejo crepuscular donzela
Buscando o meu querer no grito do mar
Sugeres-me da noite ser sentinela
Do amor maior que tenho para dar.


Fogosa, não há para ti fronteira
Por isso és livre no teu adejar
Do homem cansado tu és a esteira
Deixa que é tempo de ele descansar.

Sê doce e meiga, pressa não tenhas
Procura o teu ímpeto dissimular
A sede que tens, no bom senso a retenhas
Olha que é tempo de ele descansar

Antonius

NEM SEMPRE A RAZÃO

NEM SEMPRE A RAZÃO


Albufeira poderosa

De minhas energias ditadora

Ressoa dentro de mim

Força impiedosa

De mil sonhos portadora.

Feita senhora do meu querer

Tantas vezes fonte do meu sofrer

Mas mais ainda assim o quero

Razão do meu viver.

Quimérica dualidade

No meu pensar se passeia

Divagando, perambulando

Ora aprontando-me o norte

De luzente presságio anunciadora

Ora outra sorte me ditando

De novos desígnios senhora

Na incerteza me deixando.

Por incúria ou intenção

Tensa nas horas mortas

Eu deixo a força à razão

Mas mais ainda ao meu impulso

À força incontornável da emoção.


Antonius

JOCOSIDADES

Jocosidades

Gostava de ser poeta
Mas um poeta galante
Cantasse minhas mágoas
Mas com palavras certas
Assertivo, bem falante,
Instável nas minhas andanças
Qual cigano errante.

Se assim eu fosse poeta
Cantando alegrias e dores
Não esqueceria nunca os meus amores
E porque de espírito alerta
Teria a certeza certa
De levar o meu projecto avante

Se eu fosse poeta
Sim, se fosse deveras poeta
Eu tinha um dizer escorreito
Às palavras capaz de dar cônscio jeito.
De ambição dilecta
Conheceria os vinhos de Alicante
Não menos o torrão dessas bandas
E claro os conventuais de Amarante

Mas para que eu fosse poeta
Teria que ter a mente aberta
Entusiasta no meu labor
Amante da noite, sonhador
Imaginação transbordante
Ter um sonho na alma
Não temer nunca levar a palma
E mesmo não sendo poeta
Ter dele a Aura

Mas de repente
Metanóia não sonhada
Faz-se-me luz na mente
Não, eu não sou poeta
Mas mora-me um poeta na alma.

Antonius

INESPERADA VISITA

          INESPERADA VISITA


Se bem penso, nem só para o amor, o eufórico, o lúdico, o humorístico, o sensual mais ou menos ousado, existe este site. Também nele há ou deve haver lugar, assim julgo para a alusão – já que de canto não é fácil nele honra-lo – para o profundamente sofrido, já que a dor é inerente à humana condição. Por isso que ninguém se escandalize por uma curta viagem pelo patético da vida. 
O tema que nesta hora acorda em mim mexe com o mais profundo da raiz humana, rasgando em lúgubre transversal toda a sua natureza, enraizando no corpo e volatilizando-se no espírito. È patético - repetimo-lo - o tema, mas ao mesmo tempo arrebatador, na medida em que interfere, integral, nas profundas do nosso ser. Há um certo pudor, não sei bem se medo, um certo respeito – não sei se é o termo correcto -  por o leitor. Mas uma réstia de coragem ou ousadia, ou despudor, desafia-me a abrir e com determinação a porta e a entrar com desassombro na matéria que hoje – não sei se por estar um dia de acentuada intempérie me sinto desafiado a abordar.
Sem me considerar poeta, ouso defender que considero o assunto rotundamente susceptível de ser tocado, porventura cantado.
Era um imenso e aparente relvado com árvores que até davam fruto, de premeio. Ao centro uma pequena colina da qual se dominava o verde prado. Fomos para ali conduzidos num anúncio de surpresa da guia do grupo já que identificar a visita poderia ser desestimulador para alguns. Uma vez postados na colina, espraiado o olhar pela distância como quem busca apetitosa novidade, os nossos olhos vão-se aproximando das imediações da colina e é então que se apercebem da natureza do lugar. Aqui e além, mas como por inusitada magia cada vez mais próximas, uma e outra e depois outra e, afinal, um sem fim de cruzes a salpicarem o relvado. Aqui, além e mais além, uma simples flor. Está desfeito o mistério. É um cemitério, não à maneira dos nossos.
Ali tudo era simples, igual, não havia distinção de classes. Os que ali repousavam tinham a mesma idade, mais ano menos ano (dezanove a vinte e um anos) e para ali foram levados numa mesma época, a da brutal segunda grande guerra. Eram militares alemães os que ali jaziam, aqueles cujos corpos jovens foram entregues há cerca de sessenta anos às leis implacáveis da terra-mãe. Sim por estranho que possa parecer e explicação não nos foi dada e também não a descortino, eram militares alemães. Isto em terras da Normandia, terras da nação Francesa, naturais inimigos da nação Alemã. Perpassou por mim e decerto por outros, um acolhedor sentir, quase ternurento. Surpreendeu-me que fosse dada aquela dignidade a jovens militares da grande nação inimiga. Não tive lágrimas. Estas imaginei-as nos olhos daqueles que foram pais desta juventude brutalmente sacrificada na flor da idade. Neste instante escutei distante – tive essa ilusão, eu sei – uma melodia que me é profundamente cara e que me toca a alma em determinados momentos. É uma canção de Marléne Dietrich que de algum modo canta a tragédia desta guerra e lhe é contemporânea. Então os meus olhos, eles mesmos vertem lágrimas que me fazem sentir no mais esconso da alma que existe uma resposta para este drama. Os sentimentos que remanesceram em mim remeteram-me durante algum tempo a um silêncio que me fez viajar por um inexplicável mundo caldeado na dor, na violência desfeita em humanidade, numa estranha paz interior, na saudade.

Antonius

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Aventura da Vida

AVENTURA DA VIDA



Viver é assomar à janela do tempo,
Sorver toda a vastidão do horizonte
É domar a fúria do vento
E contornar-lhe os impetos
É ter quartzo na mente
Para duro e determinado
Se fazer o seu pensar
E deixar-se habitar
Pelo dom de amar.
É das estrelas por absurdo
A luz ver dos Quasares.
É ver para além do tempo,
É pressentir, sonhar
É ver com lucidez o outro
Auscultá-lo, interpelá-lo
Nunca o ver sobranceiro
Mas antes na caminhada
E na funda tolerância
Indefectível parceiro
Viver é finalmente
Abrir e fechar a janela do tempo
Certo de que uma nova aurora
Fará auspicioso amanhã.

Antonius

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Da Era do Automóvel

DA ERA AUTOMOVEL



A alicerçar o tema que me ocorre está essa prosaica máquina de transportar pessoas que dá por «automóvel». Curioso é que na mesma medida em que sinto hoje uma espécie de cansaço (custa-me chamar-lhe repulsa) por essa máquina, não consigo esquecer o fascínio que ela exerceu já sobre mim. Nesse remoto tempo em que na nossa aldeia o nosso já então cansado carro era o único, e raras vezes na semana por lá passava um seu congénere, que punha em alvoroço a canalha (e não só), o nosso carro, apesar de objecto de trabalho que era, fascinava-me a tal ponto que hoje, decorridos sessenta anos, tenho a certeza que era capaz de o desenhar.
Pretendi neste intróito confrontar o meu encantamento de outrora com uma certa relutância que nos dias que correm me assalta.

É que naquele tempo o carro era tão só um objecto cheio de utilidade, a oferecer-nos comodidades nunca vistas, a encantar-nos com a beleza das suas linhas. Recordo um acidente nessa época em que morreu atropelado um rapaz lá para os lados de Lisboa, como guardo no subconsciente a vaga ideia de um ou outro caso de mais ou menos gravidade.
O que hoje me motiva e me desafia a divagar é aquilo em que o automóvel se converteu ao ponto de operar em mim uma profunda mudança de atitude. De objecto de deslumbramento converteu-se em mortífera máquina, factor de afirmação sem paralelo causadora de infinitos sofrimentos. De um tempo em que durante um ano aconteciam no País meia dúzia de situações mais ou menos graves, estamos caídos num outro tempo em que se morre a esmo, em que se fica estropiado para o resto dos dias, em que as estradas se converteram em autêntico cadafalso. Penso às vezes no famoso Henry Ford, no salto em frente, fantástico, que ele deu na democratização do automóvel, mas logo sinto o peso dos dramas sem conta e sem medida que essa máquina por ele desenvolvida, tem levado a cabo. Não sei se ele já deu voltas de remorso na tumba…Depois deste tipo de reflexão, fico-me sempre a pensar: não, não sou eu que vou acabar com o automóvel. Ouso prever que num futuro próximo ele deixará de ser aquela máquina destruidora, muito pessoal, e cuja velocidade depende da simples vontade do condutor.
A verdade é que se vive, estranhamente, no tempo da indiferença em relação à «matança» automóvel. Parece que ninguém tem que preocupar-se com isso. É uma fatalidade contra a qual nada há a fazer, um escandaloso cruzar de braços. Eu acho que há, que terá que haver e que vai haver neste distraído mundo alguém que, nesta matéria, dê um rumo novo às coisas. Países bem mais civilizados do que o nosso tem dado passos importantes, nomeadamente em termos de limites de velocidade. Entre nós é o aventureirismo, o desrespeito total que vingam.
E por hoje, por aqui me fico.

Antonius

Imorredoiro Instante

IMORREDOIRO INSTANTE



Há instantes imorredoiros que só no amor acontecem.
Por vezes navegamos nas águas profundas
De um sono que tem ânsias
Há dias, alta noite navegava nesse mar
Quando sou desperto pelo suave pousar do teu joelho
No púbico desfiladeiro de mim
Enquanto o teu corpo se molda ao meu.
Desperto mas não reajo
Consinto aquele peso ternurento afagar-me
Até ao tutano dos sentidos
Consenti enquanto pude
Delicioso sentir.
Longe já do sono senti-me viver
Serenamente uma ternura infinita
Senti o amor passar por mim,
Instante imorredoiro que foi.

Lucius Antonius

Regresso às Origens

(Em memória de meu pai
06 de Outubro)


REGRESSO ÁS ORIGENS



Foi aqui nesta casa, humílima mansão
Suas telhas abrigando campestre geração
Que há remotos anos humano ser nasceu

Era Outono era tempo de canseiras
De uvas maduras prenhe ainda a videira
Dourados poentes ostentando o céu

Filho de gente pobre era o menino
Ainda que o mais entranhado e fino
O amor com que o anelavam seus ufanos pais

Entre choros e sorrisos se ofertava à vida
Que lhe acenava ao longe apetecida
Em lampejos de ouro, sonhos, ideais

Saudades tenho desse tempo não vivido
Sede de regresso a um mundo apetecido
Rumando contra o tempo em busca do passado

Inefável sentir este que eu sinto
Amar entranhadamente o que pressinto
Ser algo de mim ao tempo arremessado

Nestas pedras enegrecidas pelo tempo
Nesta sacada batida da chuva e do vento
Eu me revejo no que eu fui antes de ser

Neste mundo de nós que ao longe se esvai
Neste reviver os caminhos de meu Pai
Excelso regresso às origens – Renascer

(OUTUBRO DE 1972)

Antonius

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Jerusalém

JERUSALÉM



Longe bem ao longe
No toque plangente
Dos teus sinos
Da estrada de Damasco
Prenuncio
Na voz única
Dos teus Minaretes
Na inconfundível prece
Das tuas Sinagogas
Não te vislumbram
Os meus olhos
Oh Jerusalém
És símbolo
Interrogação
És mistério
Que o teu eterno muro
Cravejado de tempo
De sofrimento
Eco das lamentações
Sonho e sede dos homens
Que em ti se dessedentam
Que o próprio tempo
Esventras
Num quase impudor.
Por seres aquela que és
Muito sangue jorrou
Das tuas entranhas
As pedras do teu lajedo
São já feitas de tempo
Um tempo que se fez eterno
Quis refugiar-me em ti
E bati às tuas portas
Oh Jerusalém
Mas não se fez ouvir
O eco da minha batida.
Respira-se ainda em ti
Cidade de antanho
Da memória que mora
No mais fundo de mim
Respira-se de Salomão
A etérea aura.
Tens a marca
Das gerações
Que te eternizaram
Saudade guardo de ti
De um tempo que não vivi
Mas de que oiço
Longes murmúrios.
Espero ainda
Que as tuas portas
Se me abram
Oh Jerusalém

Antonius

Telúrica visão

Telúrica visão



Sou um fascinado por ti oh lua
Desde a noite distante
Em que te apontaram
Os dedos de minha mãe
Mas é platónico o amor que te devoto
Não quereria, qual Armestrong tocar-te tão pouco
Que seria grande o medo da decepção.
Quereria rondar-te
Porventura planar na tua imediação
Que o meu intuito não seria tocar-te
Não moravam ai as razões da minha razão
Adoraria acercar-me de ti
E de algures no infinito espaço
Observar distante a térrea esfera
Que de planeta azul tomou o nome.
Sim não quereria pousar os pés no teu espaço
Sequer fisicamente importunar-te
Mas sim do teu etéreo mundo
Ver lá longe girando no infinito azul
Essa Terra que é nossa, que é minha
Onde nasci, vivi e onde
Numa eternidade sem barreiras
Serão acolhidos os restos de mim,
Como são os de uma humanidade
Que conta a historia por centúrias
Integrando-nos na sua desconcertante
Apaixonante e dolorosa esfera
Pelo tempo dos tempos.

Antonius

Oh se sonhei!

OH SE SONHEI!



-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Se sonhos tantos
Registo não tenho que os guarde
Devorados pelo tempo
Esmagados na mó do moinho
Atirados ao passado pelo vento
Mas convertidos em memória perene
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Eles foram tantos, tantos, tantos
Que impossível é saber quantos
Certo é que
Sonhei mais do que vivi
Oh quanto mais
Que o sonho sempre ao meu alcance
E o concreto tantas vezes distante!
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Nos sonhos que eu sonhei
Há feitiço, há noites de luar
Há madrugadas e estrelas cadentes
Há dos sinos o som plangente
Mas não há coisa qualquer
Há aqueles com quem me cruzo – a minha gente.
Mas nos sonhos que eu sonhei
Mais que tudo, oh quanto mais
Há perfis, há rostos, há saudades
Há delírios de Mulher

Antonius

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Chileno

O CHILENO




Nos seus quase noventa anos, Carlos Pinto da Fonseca recompõe-se da sua caminhada de todos os dias no Paseo Gervasoni, um dos seus sítios predilectos para os fins de tarde. A marca do tempo evidencia-se-lhe na curvatura da coluna que empurrando-lhe a cabeça para a frente, o faz olhar insistentemente a terra, como no apelo do fatal retorno. As pernas ainda o fazem capaz de razoáveis pedestres ousadias. Cidade onde está radicado há já cinquenta e cinco anos, Valparaíso ocupa lugar de destaque no mundo das suas afeições.
O fim de tarde de hoje mostra-se diferente para o velho Carlos que é tentado a atribuir ao por do sol, talvez ao dourado das nuvens esguias e pontiagudas que começam a escurecer o poente. Verdade é que, não sabe ele porque, o seu pensamento nesta hora voga por sítios que há muito andavam arredados no mundo das suas recordações, um daqueles longos períodos em que ele esquece as suas origens longínquas, como se fosse um natural desta cidade que o fascinou e por que se apaixonou desde a primeira vez que a viu. Mas este fim de tarde é diferente. O seu pensamento ergue-se no espaço e viaja para terras distantes. Para surpresa sua tudo lhe lembra do tempo de criança nessa aldeia longínqua desse Portugal que sabe, porque sente que mora, morou sempre no recôndito do seu coração. Lembra-se das lágrimas que chorou quando nos seus tenros doze anos, desembarcou na cidade do Rio de Janeiro, da angustia que sentiu ao encarar pessoas estranhas, que o trataram bem, onde se acolheu ainda que nas mais modestas condições mas que à partida nada ou quase nada lhe podiam dizer. Como se lembra e nesta hora sente a amargura dos rostos esmagados pela dor da despedida sem remissão de seus pais.
O sol a despedir-se nas montanhas da banda contrária ao oceano, esse sentimento que se chama saudade apodera-se de si até que os olhos se lhe humedecem, tomando consciência de que não é tão nova como isso esta experiência ou sentimento. Pensa com alguma amargura no que tem sido a sua atitude em relação à família. Se nos primeiros tempos foi assíduo nos contactos, a partir não sabe de quando como que se desligou dos do seu sangue, estranho sentimento de quem esqueceu algo que lhe devia ser sagrado. Sente remorsos nesta hora. O que será feito da minha gente, dos meus familiares, dos meus amigos? Não vai há muito tempo que num idêntico fim de tarde, no Cerro Barón onde tem a sua residência se deixou envolver por este mesmo mundo da saudade que o levou às origens. Surpreendem-no hoje estes instantes sentimentais que começam a visitá-lo com alguma frequência. Recorda os seus amigos de infância, quase na ilusão de que está a conviver com eles nessa idade. Por algum tempo tem a ilusão de que está a viver com eles as traquinices da infância. O manto da noite começa a anunciar-se sobre a cidade emoldurando os seus característicos Cerros, enquanto que no seu coração cresce a determinação há muito afastada dos seus propósitos de quanto possível num breve prazo ir de visita à sua terra. Sente que são horas de regressar a casa, mas o tempo ameno que faz permite-lhe que acalente o recém nascido sonho que toma vulto na medida em que os minutos passam e o seu pensamento vagueia pela longínqua extrema ocidental da sua Europa . Sim, habituara-se já a admitir que o tempo tudo apaga e daí que o seu mundo há muito já passara a ser o deste sul do Continente Americano. Afinal foi aqui que ele acordou para as coisas que hoje valorizam a sua vida. Foi o mundo da leitura que o tornou um homem relativamente culto e o interesse pelas coisas da arte. A pintura fascinou-o e cedo se converteu no seu ganha pão. Mas tudo isto, toda esta caminhada de vida, tem que reconhece-lo, deve-o à pessoa que para si foi preciosa, Mercedes mulher Chilena com quem veio a casar. Belíssima mulher que conciliava traços Hispano-Persa numa harmonia impregnada de exotismo, em que o sonho do regresso à sua Valparaiso era evidente. Aqui a razão de ser da vinda de Carlos Pinto da Fonseca para esta bela região da Sul-America. Na sua mente estabelece-se uma espécie de confronto entre os seus dois mundos, fazendo-lhe nascer na alma uma necessidade de escolha ou opção. A saudade da sua terra surgiu como uma telúrica erupção. Pensou nos noventa anos de que está à porta, no que isso significa em termos de realidade humana, reflectiu uma vez mais no que esta cidade tem de encantamento para si, nas circunstâncias que do Rio de Janeiro para ali o trouxeram numa idade ainda relativamente jovem, na inesquecível mulher, com quem foi um homem feliz até aos setenta anos. Depois da morte da Mercedes nunca mais deixou de se sentir acometido por uma acentuada solidão, já que do casamento não houve filhos, e aquele que adoptaram morreu tragicamente aos dezanove anos e, diga-se era objecto de uma total afeição. Não obstante estes factores e o facto daquelas duas criaturas jazerem ambas nesta cidade com o que isso para si significa em termos afectivos, deste fim de tarde resultou, surpreendentemente para si, que a balança dos seus afectos se inclinou sensivelmente para as raízes, a sua terra natal, a sua família, os seus amigos. Quando olha para o relógio é quase meia noite. Espanta-se consigo mesmo, interroga-se sobre o que se terá passado neste fim de tarde no mais fundo de si, mas o mais importante que sente ao regressar a casa no último ascensor da noite é um sonho que sente aquecer-lhe a alma. Ao abeirar-se de casa detém-se por alguns instantes, indiferente ao fresco que a esta hora faz defronte da igreja de São Francisco, por ventura a solicitar da Providência inspiração para as grandes decisões que pressente no mais fundo de si.
Não se pode dizer que tenha sido uma noite bem dormida esta. Sonhos a raiarem quase o absurdo, sem nenhuma relação aparente com o que foi a sua reflexão daquele fim de tarde, mas que depressa se desvaneceram.
O projecto de vir à terra, foi tomando forma acelerada na sua mente. Claro que se lhe colocava o problema dos custos, pois embora reconhecesse qualidade nos seus trabalhos que de resto o apaixonavam, lhe não permitiam ir além de uma vida modesta, já que também se não dispensava de uma que outra extravagância, sobretudo de visita à Buenos Aires que sempre o enfeitiçou. Uma ida à boite de Santilhena onde se esquece da idade e se deixa embalar pelos golpes de tango da juventude e as idas ao bar Olímpia, fazem parte indispensável do programa das suas visitas à capital Argentina.
Tem programada a próxima ida a essa capital no Maio que aí vem, mas por ser sempre dispendiosa e na sua cabeça está já segura a decisão da sonhada viagem transatlântica, põe de lado esse projecto na atitude de reunir economias que lhe permitam concretizar o sonho que acalenta.
Em meados de Março viaja ele no avião da Ibéria rumando sua almejada terra. Faz escala no Rio de Janeiro, onde se limita a deixar algumas saudosas lágrimas. Saudades de um tempo difícil mas que de certo por isso preenchem um recanto do seu coração. Ao anoitecer do dia dezoito de Março aterra no aeroporto de Pedras Rubras onde o espera o sobrinho Feliciano. Ao sair do aeroporto alarga os olhos numa ânsia de tudo abranger, mas que só ilusoriamente consegue. Sentir os pés poisarem numa terra que sente sua é uma experiência cara. Ao chegar a Vila Chã, o seu olhar como que mastiga recantos que lhe são familiares e que não mudaram tanto como isso. Mas a sua grande expectativa são as pessoas: o irmão, as irmãs e os amigos do seu tempo.
Já na velha casa dos seus pais e avós e depois de fazer correr os dedos da mão pela parede exterior da casa num gesto que sente mais do que humano, correndo o olhar pelos presentes, apercebe-se, como numa inesperada descoberta que para além do Feliciano e da Célia que aparentam proximidade dos setenta anos, o resto é gente jovem, sobrinhos netos e decerto bisnetos. Pergunta pelo Artur, seu único irmão e pela Deolinda e Laura, irmãs. A informação que lhe é dada petrifica-o. Todos tinham já morrido. Neste instante Carlos Pinto da Fonseca como que acorda para uma realidade que lhe devia ter sido já evidente: «pois se eles eram mais velhos do que eu e se eu tenho a idade que tenho, como é que não havia de ser natural que eles tivessem já partido». Ao colocar-se esta patética questão, os olhos humedecem-se-lhe e como que acorda nele uma rajada de lucidez em relação aquilo que é viver.
Sobretudo a memoria do Artur, mais velho três anos do que ele, sente-a fundo nos poros da alma. Era como que um criado ao serviço daquele irmão mais velho mas a quem denotava toda a amizade deste mundo. Na manhã do dia seguinte, linda manhã de primavera, como se se lhe tivesse passado uma esponja pela memória levantou-se com natural entusiasmo para ir visitar os velhos amigos do Salgueiro, do Burgo, das Casas e de Santa Eulália. Chegado ao Salgueiro pergunta a uma senhora de meia idade que não tinha já hipótese de reconhecer pelos senhores Francisco e Joaquim. A informação que recebe é desoladora. Ambos tinham morrido já há um par de anos. Pensou para consigo que os mortos começavam a ser muitos pelo que, para evitar cicatrizes mais profundas antecipou junto daquela senhora a informação complementar de que precisava: «agora diga-me minha senhora o Toninho do Burgo, o Armandinho das Casas, o senhor Doutor de Santa Eulália e o Zé do Douro ainda são vivos, não é verdade? Oh meu senhor já morreu tudo. Se o senhor é do tempo deles como parece não se iluda. Não vai encontrar ninguém. Estão todos já no mundo do Senhor». Desolado, triste, cabisbaixo, toma o caminho de casa sem qualquer tipo de objectivo na cabeça. O Feliciano notou-lhe abatimento ao almoço e depois de entender as razões do tio, sugeriu-lhe uma saltada ao Porto, admitindo que a vida da cidade o espevita-se. Assim ficou aprazado para o dia seguinte. Carlos Pinto da Fonseca não conhecia a capital do Distrito e fez questão que fossem de comboio, dizia-lhe mais. Gostou francamente da baixa da cidade, Torre dos Clérigos, a zona da Ribeira, etc.. À hora do almoço fez-se luz na cabeça de Feliciano, encaminhando o tio para a Ribeira. Na sua mente tinha o restaurante da Ponte das Barcas, um pouco caro, mas teria que ser.
A meio da refeição Feliciano chama a atenção do tio para um quadro de avantajadas dimensões e que se destacava na sala de jantar. «Sabe quem é?» - pergunta Feliciano. Carlos infirma-se no retrato que o quadro representa e vê nele feições que lhe não são estranhas, mas que não consegue identificar. Depois de um sorriso de Feliciano, que compreende a dificuldade do tio, diz-lhe com uma certa exaltação de ânimo e um brilho nos olhos: «tio, aquele senhor é, nem mais nem menos, o seu irmão Artur». «Mas a que titulo? Estás a brincar comigo?» É que o tio não chegou certamente a saber. O tio Artur veio muito novo aqui para o Porto e ele era um fura vidas e tinha muita habilidade para o desenho. Ele lá se desenvencilhou conforme pode e acabou por tirar um curso de Belas Artes. Mas bem mais importante , tornou-se um artista prestigiado nesta cidade. Só é triste que tenha morrido tão cedo, com trinta e oito anos. Por isso este restaurante que ele frequentava o distinguiu desta maneira. Acho que é novidade para o tio». Depois de uma pausa durante a qual os olhos de Carlos se detiveram no grande retrato, este comentou: - estás a dar-me uma novidade que me deixa cheio de orgulho, autenticamente esmagado. Uma novidade que me compensa da desolação de ontem, quando constatei que os meus irmãos e os meus amigos já nenhum cá está. – Ainda mal ditas estas palavras, praticamente vazia já a sala, entra um cavalheiro na aparência dos setenta anos que se detêm numa atitude de procura, até que o seu olhar se cruza naturalmente com o de Feliciano. Este sente que está a confrontar-se com alguém que lhe não é estranho. Mas aquele ligeiramente apoiado numa bengala encaminha-se decididamente na direcção de Feliciano, como quem se dirige a alguém conhecido. Pergunta-lhe se o não conhece mas ante o constrangimento de Feliciano apressa-se a dizer quem é: - sou o Silvério da Maia, pintor, que tive o privilégio de conhecer aquele homem que está ali naquela moldura e que, bom observador que sou, sei que foi seu familiar, pois recordo-me de si na homenagem que foi prestada há uns bons vinte anos ao nosso Artur da Fonseca.
Carlos Pinto da Fonseca rejubila com as palavras que ouve apressa-se a identificar-se ao recém- chegado e pelos vistos artista também da sua área com quem inicia conversa que se estende animada tarde fora. Certo é que deste diálogo resulta uma decisão importante para o Carlos: a de, pelo menos a titulo experimental, encarar nesta cidade a vida artística. A recordação de Valparaíso, que se tinha avivado com a desolação das incontáveis mortes dos homens de seu tempo, como que se aplaca e quase dilui ante dois factos importantes: a descoberta de seu irmão como pintor de mérito e de que sente incontido orgulho e naturalmente o acorda para esta cidade, que é o mesmo que dizer para a sua terra, e a expectativa lisonjeira de aqui realizar estimulante trabalho. E é com este estado de espírito, o ânimo recomposto que regressa a Vila Chã. Leva orgulho, uma vaidade com que sempre teve dificuldade em conviver, e projectos na sua cabeça que, apesar da idade, se recusa a resvalar na inactividade
Chegados a Vila Chã e enquanto o Feliciano arruma o carro, Carlos Pinto da Fonseca encaminha-se para junto do enorme penedo que a história do mundo colocou ali perto da casa dos seus pais. Penedo que sempre, desde criança – recorda-o bem – sempre o enfeitiçou. Encostando-se a ele, um lampejo portador de inesperado e profundo bem estar sentiu encher-lhe a alma. De alguma maneira sente-se ressarcido do sofrimento do dia anterior. A dignidade que tomou conta de si trazida pela memória de um irmão que passou a ser fonte de orgulho para si e a expectativa de um bom trabalho na cidade do Porto, voltam a aplacar-lhe o espírito em relação à distante e mítica Valparaíso.
Instantaneamente quando dava uma puxa no seu charuto com aparente descontracção, um sentir de felicidade que não tem medida perpassa-lhe pela mente e, como que envolto numa espécie de relâmpago, a vida de Carlos Pinto da Fonseca extingue-se.

Antonius

domingo, 31 de outubro de 2010

VIAGEM NO TEMPO

VIAGEM NO TEMPO
(Previsão para o ano 2060)



A nave desloca-se já a uma vertiginosa velocidade. É tripulada pelos astronautas Norberto Sá, Olímpio Marçal e Du-Bocage, todos especialistas que se complementam na ária das viagens espaciais, nomeadamente, no que diz respeito ao Norberto Sá , no tocante às promissoras descobertas das viagens no tempo, mas de que até ao momento não há conhecimento de experiências de vulto. Essa está nesta hora em curso na pequena nave que tripulamos. Descolamos há instantes do centro espacial de Alcochete. É visível entre nós uma boa dose de euforia mas também de ansiedade, apesar de confiantes no sucesso do empreendimento. Nesta altura trocamos impressões sobre a adaptação física e psíquica de cada um, tudo se mostrando em ordem, sendo certo que temos incorporado em nós um sistema de actuação de um sexto sentido (chamado de «Prévius») que nos permite prevenir e agir em situações de emergência ou inesperadas, com vertentes num factor de estabilidade e tranquilidade nossa.
A nave acaba de transpor o limiar do século XX, obviamente no sentido do passado, sendo o seu comportamento uma autentica simbiose entre o viajar no tempo e no espaço, com as implicações que isso trás a todos os níveis, mas previstas. É evidente que a estrada ou rota do passado tem um destaque especial. Acabamos de entrar em áreas de conflito que me interessam particularmente, a mim (Du Bocage), já que tenho a incumbência de toda a espécie de registos e ocorrências. Identificamos as guerras do Vietname e da Coreia e de imediato episódios da 2ª guerra mundial, não nos escapando o desembarque na Normandia, o combate do Pearl Harbur, a tomada de Paris  e os termos em que esta cidade encarou a presença do inimigo.
Hitler e Estaline não escapam à nossa observação e não é difícil ver-se neles psicopatas de corpo inteiro.
Nesta data e graças ao mencionado sistema «Previus», vislumbramos na América num rancho Texano, um catraio de sacola às costas e calças à golfe entrar para um luxuoso carro que o conduziria à escola. Deu para entender que esse miúdo viria a conduzir de forma lastimável os destinos daquele país nos começos do terceiro milénio.
Fazemos a primeira paragem na região de Madrid já depois de finda a brutal guerra civil de Espanha. Para tal utilizamos meios técnicos adequados, nomeadamente os que permitem furtarmo-nos pessoalmente ou mesmo a própria nave à visibilidade de terceiros, através de um sofisticado processo de desmaterialização, que abrange as nossas próprias pessoas…

…Sobrevoada Toledo o aludido sexto sentido (Previus) sugere-nos uma pronta passagem por Lisboa, onde assistimos ao Regicídio e logo ao fim da Monarquia. Não perdemos tempo, já que este é medido ao milímetro, e pomo-nos na peugada do século XIX. Aqui presenciamos cenários de interesse a nível nacional, nomeadamente as Constituintes e a revolta da Maria da Fonte, a convenção de Évora-Monte e reconhecemos figuras de vulto sobretudo no campo das letras.
A nação Francesa e os acontecimentos que aí decorrem nos fins do século XVIII levam-nos a apontar a nave  para aquele tempo e espaço. Como é fácil de entender as nossas deslocações são aleatórias, ora num sentido ora no outro, sem que isso tenha significado no nosso percurso que acima de tudo envolve não a área do Espaço, mas bem mais ambiciosa e significativa, a do Tempo. Isto para boa compreensão do nosso relato. É assim que assistimos à tomada da Bastilha, à decapitação dos reis de França e ao eclodir da revolução francesa e subsequentes campanhas Napoleónicas de que o nosso país não tardaria a sofrer consequências.
            É por esta altura que nos confrontamos com algumas dificuldades devidas sobretudo à evolução do idioma Francês, desajustado àquele que aprendemos no nosso tempo. Mas lá fomos ultrapassando as situações designadamente em termos de vestuário, mas que não nos ilibou de um certo ridículo em diversas situações, chegando a privar-nos de contactos para evitarmos contratempos.
Nesta estada em Paris que se revestia de particular interesse, aconteceram imprevistos, alguns a roçarem o picaresco. Acontecia por vezes algum de nós esquecer-se de desligar o sistema de desmaterialização, o que o colocava numa situação de invisibilidade, para aqueles com quem se cruzava. Foi assim que quando atravessávamos o Pigalle, o Norberto apanhar um grande encontrão de um cavalheiro que vinha em sentido contrário e que se mostrou deveras confuso por não ver o que é que o tenha abalroado , mas lá seguiu o seu caminho a vociferar,  a interrogar-se, decerto com os seus fantasmas. Situações como esta foram de resto frequentes e até desconcertantes, e de que francamente tiramos todo o partido.
Por esta altura, visionando a curta distancia o reinado de Luís XV, concordamos não ser prudente mais este pequeno salto no sentido do passado.
 Todos os recursos e nomeadamente combustível nuclear aconselham ao regresso, uma vez que um contratempo desta natureza poderia implicar uma paragem sem retorno, de que podemos imaginar as consequências: uma morte lenta no Espaço…

 Visitada uma vez mais Paris e respigando o ambiente da época (vão lá mais de 200 anos), apontamos a nave no sentido da península Ibérica e portanto do nosso País. Como a velocidade é vertigem e há uma serie de acontecimentos que decorrem na mesma época (fins do século XVIII) depressa sobrevoamos Lisboa  poisando na deserta área de Monsanto para mais garantido despiste.
Por esta ocasião governa o nosso País o rei D. José e nós, através do sistema «previus», já referenciado, apercebemo-nos de que acontecimentos de vulto vão passar-se, sobretudo na região da capital. É assim que assistimos à elevação da chamada «Passarola» no Terreiro do Paço por artes do padre Bartolomeu de Gusmão. É um acontecimento digno de ver-se. Para nós coisa absolutamente primitiva, claro. A nossa preocupação, como homens dos meados do século XXI em despistarmos a nossa aparência, sobretudo o nosso linguajar que, decorridos quase 300 anos, apresenta notórias diferenças, é grande, aconselhando-nos a sermos sóbrios no nosso falar, apesar de estarmos razoavelmente preparados.
Não tarda que na região de Lisboa ocorra uma tragédia de enormes dimensões, de que somos testemunhas, justamente o terramoto de 1755 e o consequente maremoto, que de resto prevíramos com alguma antecedência não no pormenor nem na natureza exacta do fenómeno a acontecer. Sim na sua devastação, mas aspecto em relação ao qual não tínhamos maneira de tomar quaisquer providências. A nós, lamentavelmente, restava-nos aguardar os acontecimentos.
    Quem na prática governa os destinos do país deste tempo é o chamado Marquês de Pombal, homem da total confiança do rei, de aguçada inteligência e poder de iniciativa. Imediatamente após o terramoto providencia pelo restauro da sacrificada Lisboa com a abertura de novas vias, de amplas dimensões e mesmo arrojadas para a época. Para além disso toma iniciativas de vulto, algumas polémicas. Determina a abolição da escravatura na Metrópole e pelo termo da inquisição que virá a concretizar-se em definitivo alguns anos mais tarde. A morte dos Távoras por determinação real, é-lhe atribuída de um modo especial, facto que é objecto de surdos comentários.
            O nosso encontro pessoal com aquele ilustre homem de Estado, por muitos tido como déspota, faz parte dos nossos planos, pelo que não perdemos tempo na medida do possível em concretizá-lo.
Como em recente conversa havida entre nós fora sugerida a tentativa de um encontro pessoal com o poeta desta época Barbosa Du Bocage sugestão que despertara uma incontida euforia na minha própria pessoa, ( remoto descendente indirecto e francamente orgulhoso daquele poeta) eu mesmo, discretamente,  recordo esse propósito, que é compreendido e aceite com entusiasmo pelos meus companheiros. O problema estará em conseguir-se a anuência de ambas as figuras, ambas de vulto, mas de posição social radicalmente diversa. Não imaginamos em que conta Bocage é tido pelo Marquês, dado o seu tipo de pessoa e a natureza polémica dos seus escritos. Todos sentimos de antemão o interesse num encontro com aquelas duas figuras de nomeada da Lisboa do século XVIII. Depois de várias diligências que não foram fáceis, conseguimos aprazar esse encontro, que vem a concretizar-se no Café Nicolas…
A cedência do Marquês de Pombal exigiu muita diplomacia, mas que soubemos usar. Durante o encontro a nossa maior preocupação  reside no uso do Português. Bocage, o nosso grande poeta, mostra-se despistado em relação ao problema, não lhe dando importância, mas o Marquês de vez em quando arregala os olhos e aguçando o ouvido pede para repetirmos esta e aquela palavra, mas acabando por mostrar estranheza em relação à nossa pronuncia, justificamos com o facto de sermos homens da região do Douro, todos com vastas explorações do vinho do Porto, actividade de particular agrado do Marquês. Será pois natural – sublinha Norberto – que o nosso sotaque seja portanto provinciano. Parece-nos aceite a justificação, a que Bocage corresponde com um dito jocoso, mal entendido por nós, mas logo seguido de duas quadras do seu particular agrado:

 Da triste Inês , inda os clamores
Andas, Eco chorosa, repetindo;
Inda aos piedosos céus andas pedindo
Justiça contra os ímpios matadores;

Ouvem-se ainda na fonte dos Amores
De quando em quando as náides carpindo;
E o Mondego, no caso reflectindo,
Rompe irado a barreira, alaga as flores:

Todos ficamos em respeito ante este espasmo poético. O Marquês acena com a cabeça numa atitude de apreço, no que me diz respeito, pessoalmente, tenho dificuldade em conter a minha emoção defronte daquele meu antepassado, de quem naturalmente ocultei o meu sobrenome. Não me parece oportuno que ele sonhe com tal realidade, apesar de ser essa a vontade dos meus colegas. Decorre animada a cavaqueira, apesar de serem escassas embora bem-humoradas as palavras do poeta. A situação torna-se comprometedora no momento em que depois de um silêncio, o nosso Elmano Sadino na sequência de um comentário relacionado com as suas andanças pelo Oriente, arranca imprevistamente com outro verso, bem menos apropriado:

Sanhudo inexorável Despotismo,
Monstro que em pranto, em sangue a fúria cevas,
Que em mil quadros horríficos te enlevas,
Obra da Iniquidade e do Ateísmo;

           Fica-se por este verso que nos deixa, a olharmo-nos de soslaio, enquanto que o Marquês se mostra agastado com o rasgo poético de tom satírico do poeta, por admitir que possa dizer-lhe respeito. Com a mão trémula pega no copo nem ele sabe bem se é com intuito de beber, pois limita-se a comentar também com voz trémula e num tom de quem está com alguma pressa: - o que neste momento me apetece dizer é que as portas do Limoeiro continuam abertas, não só para se sair, mas sobretudo para entrar ou voltar a entrar… - levantando-se alega urgência pessoal em se ausentar deixando-nos a promessa de um posterior encontro, mas possivelmente limitado em relação às pessoas, despedindo-se de nós circunspecto, mas ignorando o poeta, que não se mostrou minimamente perturbado.
Ao sair do Nicola o Marquês volta-se para trás para uma última palavra connosco, só que Norberto tinha accionado o sistema de desmaterialização logo após a despedida, pelo que, para surpresa e espanto do Marquês e também do poeta não enxergaram as nossas pessoas, facto para eles mais do que desconcertante, mesmo absurdo, já que não houve tempo para, em circunstancias normais nos termos afastado.
Na cabeça do Marquês ficou a regurgitar uma estranheza a roçar o medo, que ele não conteve e manifestou, apesar de tudo ao nosso poeta que, como ele, estava com os olhos esbugalhados. Esta circunstância inesperada e mesmo insólita fez com que o mal entendido se diluísse ao ponto de o Marquês pedir com aparente naturalidade a Bocage que o acompanhasse, até porque era já noite. À porta do palácio, quando iam para se despedir já quase como dois amigos (esquecido o incidente), ambos se apercebem de que uma luz, semelhante a uma estrela, mas mais intensa, sobrevoa numa vertigem a cidade, fenómeno que volta a acontecer instantes depois no sentido inverso.
Ambos deitam as mãos à cabeça extremamente intrigados e como é já tarde, o Marquês não tem coragem de mandar o pobre poeta para o convento sozinho, pelo que lhe oferece dormida no palácio. 0 poeta reflecte por instantes, mas acaba por se encher de coragem e tomar o caminho do convento onde está instalado, tranquilo já no que concerne a eventual despotismo por parte do Marquês. Caminha de punhos cerrados, como para esconjurar o mau presságio de tudo o que sucedera nesta noite e que culmina com uma desconcertante estrela capaz de rasgar os céus de Lisboa. Desconhecem os dois antagónicos alfacinhas o grave incidente que está a acontecer e que tem que ver com a dita misteriosa luz. É que por falha humana do nosso colega e primeiro piloto Norberto, a nave desviou-se inesperadamente da estrada do Tempo o que a colocou num total descontrole, por assim dizer numa rota de sentido contrario ao que seria normal.
            Por esta altura é recebida na base espacial de Alcochete, aonde um numeroso grupo de pessoas (familiares e técnicos espaciais) aguardam ansiosamente a descida da nave e consequente fim da aventura, uma mensagem preocupante em que Du Bocage  dá, em breves palavras, conta da situação, ao mesmo tempo que transmite nervosamente o texto de todos os registos feitos na viagem, para conhecimento futuro. A mensagem resume-se nestas breves e preocupantes palavras: incrivelmente não conseguimos descortinar como, acabamos de nos perder na estrada do tempo. Que fique bem ciente, não está em causa o espaço, os caminhos do espaço, mas a desconcertante estrada do tempo. A situação é preocupante. Muito difícil recuperarmos a nossa rota. Rezamos porque isso aconteça.

 Segundos após o termo desta mensagem patética é avistada sobre a base espacial uma luz intensa que se aproxima, ao mesmo tempo que é renovado o contacto de Du Bocage informando com incontida euforia o facto de no último instante ter sido retomada a estrada espacial correcta.
Du Bocage acrescenta, que a correcção na rota da nave correspondeu a uma entrada imprevista e genial em plena auto-estrada do tempo, com um solavanco quase imperceptível. Acrescentou finalmente: «a entrada nesta auto-estrada correspondeu a uma vertigem em termos de deslocação no tempo, pelo que foi num ápice que transpusemos todo o século XIX e XX. Há um pormenor que nos deixou pena: tínhamos previsto um espectáculo singular para meados do século XIX, justamente uma exibição da Severa na própria casa onde nasceu, na Rua do Capelão. Claro, não foi possível, ficará para uma próxima oportunidade…»

Há uma alegria incontida no grupo de pessoas que aguardam com ansiedade o termo glorioso desta viagem Trans-Tempo, que fica para a história.


Antonius