AVENTURA DA VIDA
Viver é assomar à janela do tempo,
Sorver toda a vastidão do horizonte
É domar a fúria do vento
E contornar-lhe os impetos
É ter quartzo na mente
Para duro e determinado
Se fazer o seu pensar
E deixar-se habitar
Pelo dom de amar.
É das estrelas por absurdo
A luz ver dos Quasares.
É ver para além do tempo,
É pressentir, sonhar
É ver com lucidez o outro
Auscultá-lo, interpelá-lo
Nunca o ver sobranceiro
Mas antes na caminhada
E na funda tolerância
Indefectível parceiro
Viver é finalmente
Abrir e fechar a janela do tempo
Certo de que uma nova aurora
Fará auspicioso amanhã.
Antonius
quarta-feira, 10 de novembro de 2010
terça-feira, 9 de novembro de 2010
Da Era do Automóvel
DA ERA AUTOMOVEL
A alicerçar o tema que me ocorre está essa prosaica máquina de transportar pessoas que dá por «automóvel». Curioso é que na mesma medida em que sinto hoje uma espécie de cansaço (custa-me chamar-lhe repulsa) por essa máquina, não consigo esquecer o fascínio que ela exerceu já sobre mim. Nesse remoto tempo em que na nossa aldeia o nosso já então cansado carro era o único, e raras vezes na semana por lá passava um seu congénere, que punha em alvoroço a canalha (e não só), o nosso carro, apesar de objecto de trabalho que era, fascinava-me a tal ponto que hoje, decorridos sessenta anos, tenho a certeza que era capaz de o desenhar.
Pretendi neste intróito confrontar o meu encantamento de outrora com uma certa relutância que nos dias que correm me assalta.
É que naquele tempo o carro era tão só um objecto cheio de utilidade, a oferecer-nos comodidades nunca vistas, a encantar-nos com a beleza das suas linhas. Recordo um acidente nessa época em que morreu atropelado um rapaz lá para os lados de Lisboa, como guardo no subconsciente a vaga ideia de um ou outro caso de mais ou menos gravidade.
O que hoje me motiva e me desafia a divagar é aquilo em que o automóvel se converteu ao ponto de operar em mim uma profunda mudança de atitude. De objecto de deslumbramento converteu-se em mortífera máquina, factor de afirmação sem paralelo causadora de infinitos sofrimentos. De um tempo em que durante um ano aconteciam no País meia dúzia de situações mais ou menos graves, estamos caídos num outro tempo em que se morre a esmo, em que se fica estropiado para o resto dos dias, em que as estradas se converteram em autêntico cadafalso. Penso às vezes no famoso Henry Ford, no salto em frente, fantástico, que ele deu na democratização do automóvel, mas logo sinto o peso dos dramas sem conta e sem medida que essa máquina por ele desenvolvida, tem levado a cabo. Não sei se ele já deu voltas de remorso na tumba…Depois deste tipo de reflexão, fico-me sempre a pensar: não, não sou eu que vou acabar com o automóvel. Ouso prever que num futuro próximo ele deixará de ser aquela máquina destruidora, muito pessoal, e cuja velocidade depende da simples vontade do condutor.
A verdade é que se vive, estranhamente, no tempo da indiferença em relação à «matança» automóvel. Parece que ninguém tem que preocupar-se com isso. É uma fatalidade contra a qual nada há a fazer, um escandaloso cruzar de braços. Eu acho que há, que terá que haver e que vai haver neste distraído mundo alguém que, nesta matéria, dê um rumo novo às coisas. Países bem mais civilizados do que o nosso tem dado passos importantes, nomeadamente em termos de limites de velocidade. Entre nós é o aventureirismo, o desrespeito total que vingam.
E por hoje, por aqui me fico.
Antonius
A alicerçar o tema que me ocorre está essa prosaica máquina de transportar pessoas que dá por «automóvel». Curioso é que na mesma medida em que sinto hoje uma espécie de cansaço (custa-me chamar-lhe repulsa) por essa máquina, não consigo esquecer o fascínio que ela exerceu já sobre mim. Nesse remoto tempo em que na nossa aldeia o nosso já então cansado carro era o único, e raras vezes na semana por lá passava um seu congénere, que punha em alvoroço a canalha (e não só), o nosso carro, apesar de objecto de trabalho que era, fascinava-me a tal ponto que hoje, decorridos sessenta anos, tenho a certeza que era capaz de o desenhar.
Pretendi neste intróito confrontar o meu encantamento de outrora com uma certa relutância que nos dias que correm me assalta.
É que naquele tempo o carro era tão só um objecto cheio de utilidade, a oferecer-nos comodidades nunca vistas, a encantar-nos com a beleza das suas linhas. Recordo um acidente nessa época em que morreu atropelado um rapaz lá para os lados de Lisboa, como guardo no subconsciente a vaga ideia de um ou outro caso de mais ou menos gravidade.
O que hoje me motiva e me desafia a divagar é aquilo em que o automóvel se converteu ao ponto de operar em mim uma profunda mudança de atitude. De objecto de deslumbramento converteu-se em mortífera máquina, factor de afirmação sem paralelo causadora de infinitos sofrimentos. De um tempo em que durante um ano aconteciam no País meia dúzia de situações mais ou menos graves, estamos caídos num outro tempo em que se morre a esmo, em que se fica estropiado para o resto dos dias, em que as estradas se converteram em autêntico cadafalso. Penso às vezes no famoso Henry Ford, no salto em frente, fantástico, que ele deu na democratização do automóvel, mas logo sinto o peso dos dramas sem conta e sem medida que essa máquina por ele desenvolvida, tem levado a cabo. Não sei se ele já deu voltas de remorso na tumba…Depois deste tipo de reflexão, fico-me sempre a pensar: não, não sou eu que vou acabar com o automóvel. Ouso prever que num futuro próximo ele deixará de ser aquela máquina destruidora, muito pessoal, e cuja velocidade depende da simples vontade do condutor.
A verdade é que se vive, estranhamente, no tempo da indiferença em relação à «matança» automóvel. Parece que ninguém tem que preocupar-se com isso. É uma fatalidade contra a qual nada há a fazer, um escandaloso cruzar de braços. Eu acho que há, que terá que haver e que vai haver neste distraído mundo alguém que, nesta matéria, dê um rumo novo às coisas. Países bem mais civilizados do que o nosso tem dado passos importantes, nomeadamente em termos de limites de velocidade. Entre nós é o aventureirismo, o desrespeito total que vingam.
E por hoje, por aqui me fico.
Antonius
Imorredoiro Instante
IMORREDOIRO INSTANTE
Há instantes imorredoiros que só no amor acontecem.
Por vezes navegamos nas águas profundas
De um sono que tem ânsias
Há dias, alta noite navegava nesse mar
Quando sou desperto pelo suave pousar do teu joelho
No púbico desfiladeiro de mim
Enquanto o teu corpo se molda ao meu.
Desperto mas não reajo
Consinto aquele peso ternurento afagar-me
Até ao tutano dos sentidos
Consenti enquanto pude
Delicioso sentir.
Longe já do sono senti-me viver
Serenamente uma ternura infinita
Senti o amor passar por mim,
Instante imorredoiro que foi.
Lucius Antonius
Há instantes imorredoiros que só no amor acontecem.
Por vezes navegamos nas águas profundas
De um sono que tem ânsias
Há dias, alta noite navegava nesse mar
Quando sou desperto pelo suave pousar do teu joelho
No púbico desfiladeiro de mim
Enquanto o teu corpo se molda ao meu.
Desperto mas não reajo
Consinto aquele peso ternurento afagar-me
Até ao tutano dos sentidos
Consenti enquanto pude
Delicioso sentir.
Longe já do sono senti-me viver
Serenamente uma ternura infinita
Senti o amor passar por mim,
Instante imorredoiro que foi.
Lucius Antonius
Regresso às Origens
(Em memória de meu pai
06 de Outubro)
REGRESSO ÁS ORIGENS
Foi aqui nesta casa, humílima mansão
Suas telhas abrigando campestre geração
Que há remotos anos humano ser nasceu
Era Outono era tempo de canseiras
De uvas maduras prenhe ainda a videira
Dourados poentes ostentando o céu
Filho de gente pobre era o menino
Ainda que o mais entranhado e fino
O amor com que o anelavam seus ufanos pais
Entre choros e sorrisos se ofertava à vida
Que lhe acenava ao longe apetecida
Em lampejos de ouro, sonhos, ideais
Saudades tenho desse tempo não vivido
Sede de regresso a um mundo apetecido
Rumando contra o tempo em busca do passado
Inefável sentir este que eu sinto
Amar entranhadamente o que pressinto
Ser algo de mim ao tempo arremessado
Nestas pedras enegrecidas pelo tempo
Nesta sacada batida da chuva e do vento
Eu me revejo no que eu fui antes de ser
Neste mundo de nós que ao longe se esvai
Neste reviver os caminhos de meu Pai
Excelso regresso às origens – Renascer
(OUTUBRO DE 1972)
Antonius
06 de Outubro)
REGRESSO ÁS ORIGENS
Foi aqui nesta casa, humílima mansão
Suas telhas abrigando campestre geração
Que há remotos anos humano ser nasceu
Era Outono era tempo de canseiras
De uvas maduras prenhe ainda a videira
Dourados poentes ostentando o céu
Filho de gente pobre era o menino
Ainda que o mais entranhado e fino
O amor com que o anelavam seus ufanos pais
Entre choros e sorrisos se ofertava à vida
Que lhe acenava ao longe apetecida
Em lampejos de ouro, sonhos, ideais
Saudades tenho desse tempo não vivido
Sede de regresso a um mundo apetecido
Rumando contra o tempo em busca do passado
Inefável sentir este que eu sinto
Amar entranhadamente o que pressinto
Ser algo de mim ao tempo arremessado
Nestas pedras enegrecidas pelo tempo
Nesta sacada batida da chuva e do vento
Eu me revejo no que eu fui antes de ser
Neste mundo de nós que ao longe se esvai
Neste reviver os caminhos de meu Pai
Excelso regresso às origens – Renascer
(OUTUBRO DE 1972)
Antonius
segunda-feira, 8 de novembro de 2010
Jerusalém
JERUSALÉM
Longe bem ao longe
No toque plangente
Dos teus sinos
Da estrada de Damasco
Prenuncio
Na voz única
Dos teus Minaretes
Na inconfundível prece
Das tuas Sinagogas
Não te vislumbram
Os meus olhos
Oh Jerusalém
És símbolo
Interrogação
És mistério
Que o teu eterno muro
Cravejado de tempo
De sofrimento
Eco das lamentações
Sonho e sede dos homens
Que em ti se dessedentam
Que o próprio tempo
Esventras
Num quase impudor.
Por seres aquela que és
Muito sangue jorrou
Das tuas entranhas
As pedras do teu lajedo
São já feitas de tempo
Um tempo que se fez eterno
Quis refugiar-me em ti
E bati às tuas portas
Oh Jerusalém
Mas não se fez ouvir
O eco da minha batida.
Respira-se ainda em ti
Cidade de antanho
Da memória que mora
No mais fundo de mim
Respira-se de Salomão
A etérea aura.
Tens a marca
Das gerações
Que te eternizaram
Saudade guardo de ti
De um tempo que não vivi
Mas de que oiço
Longes murmúrios.
Espero ainda
Que as tuas portas
Se me abram
Oh Jerusalém
Antonius
Longe bem ao longe
No toque plangente
Dos teus sinos
Da estrada de Damasco
Prenuncio
Na voz única
Dos teus Minaretes
Na inconfundível prece
Das tuas Sinagogas
Não te vislumbram
Os meus olhos
Oh Jerusalém
És símbolo
Interrogação
És mistério
Que o teu eterno muro
Cravejado de tempo
De sofrimento
Eco das lamentações
Sonho e sede dos homens
Que em ti se dessedentam
Que o próprio tempo
Esventras
Num quase impudor.
Por seres aquela que és
Muito sangue jorrou
Das tuas entranhas
As pedras do teu lajedo
São já feitas de tempo
Um tempo que se fez eterno
Quis refugiar-me em ti
E bati às tuas portas
Oh Jerusalém
Mas não se fez ouvir
O eco da minha batida.
Respira-se ainda em ti
Cidade de antanho
Da memória que mora
No mais fundo de mim
Respira-se de Salomão
A etérea aura.
Tens a marca
Das gerações
Que te eternizaram
Saudade guardo de ti
De um tempo que não vivi
Mas de que oiço
Longes murmúrios.
Espero ainda
Que as tuas portas
Se me abram
Oh Jerusalém
Antonius
Telúrica visão
Telúrica visão
Sou um fascinado por ti oh lua
Desde a noite distante
Em que te apontaram
Os dedos de minha mãe
Mas é platónico o amor que te devoto
Não quereria, qual Armestrong tocar-te tão pouco
Que seria grande o medo da decepção.
Quereria rondar-te
Porventura planar na tua imediação
Que o meu intuito não seria tocar-te
Não moravam ai as razões da minha razão
Adoraria acercar-me de ti
E de algures no infinito espaço
Observar distante a térrea esfera
Que de planeta azul tomou o nome.
Sim não quereria pousar os pés no teu espaço
Sequer fisicamente importunar-te
Mas sim do teu etéreo mundo
Ver lá longe girando no infinito azul
Essa Terra que é nossa, que é minha
Onde nasci, vivi e onde
Numa eternidade sem barreiras
Serão acolhidos os restos de mim,
Como são os de uma humanidade
Que conta a historia por centúrias
Integrando-nos na sua desconcertante
Apaixonante e dolorosa esfera
Pelo tempo dos tempos.
Antonius
Sou um fascinado por ti oh lua
Desde a noite distante
Em que te apontaram
Os dedos de minha mãe
Mas é platónico o amor que te devoto
Não quereria, qual Armestrong tocar-te tão pouco
Que seria grande o medo da decepção.
Quereria rondar-te
Porventura planar na tua imediação
Que o meu intuito não seria tocar-te
Não moravam ai as razões da minha razão
Adoraria acercar-me de ti
E de algures no infinito espaço
Observar distante a térrea esfera
Que de planeta azul tomou o nome.
Sim não quereria pousar os pés no teu espaço
Sequer fisicamente importunar-te
Mas sim do teu etéreo mundo
Ver lá longe girando no infinito azul
Essa Terra que é nossa, que é minha
Onde nasci, vivi e onde
Numa eternidade sem barreiras
Serão acolhidos os restos de mim,
Como são os de uma humanidade
Que conta a historia por centúrias
Integrando-nos na sua desconcertante
Apaixonante e dolorosa esfera
Pelo tempo dos tempos.
Antonius
Oh se sonhei!
OH SE SONHEI!
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Se sonhos tantos
Registo não tenho que os guarde
Devorados pelo tempo
Esmagados na mó do moinho
Atirados ao passado pelo vento
Mas convertidos em memória perene
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Eles foram tantos, tantos, tantos
Que impossível é saber quantos
Certo é que
Sonhei mais do que vivi
Oh quanto mais
Que o sonho sempre ao meu alcance
E o concreto tantas vezes distante!
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Nos sonhos que eu sonhei
Há feitiço, há noites de luar
Há madrugadas e estrelas cadentes
Há dos sinos o som plangente
Mas não há coisa qualquer
Há aqueles com quem me cruzo – a minha gente.
Mas nos sonhos que eu sonhei
Mais que tudo, oh quanto mais
Há perfis, há rostos, há saudades
Há delírios de Mulher
Antonius
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Se sonhos tantos
Registo não tenho que os guarde
Devorados pelo tempo
Esmagados na mó do moinho
Atirados ao passado pelo vento
Mas convertidos em memória perene
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Eles foram tantos, tantos, tantos
Que impossível é saber quantos
Certo é que
Sonhei mais do que vivi
Oh quanto mais
Que o sonho sempre ao meu alcance
E o concreto tantas vezes distante!
-Sonhos que eu sonhei, quantos?
Nos sonhos que eu sonhei
Há feitiço, há noites de luar
Há madrugadas e estrelas cadentes
Há dos sinos o som plangente
Mas não há coisa qualquer
Há aqueles com quem me cruzo – a minha gente.
Mas nos sonhos que eu sonhei
Mais que tudo, oh quanto mais
Há perfis, há rostos, há saudades
Há delírios de Mulher
Antonius
quinta-feira, 4 de novembro de 2010
O Chileno
O CHILENO
Nos seus quase noventa anos, Carlos Pinto da Fonseca recompõe-se da sua caminhada de todos os dias no Paseo Gervasoni, um dos seus sítios predilectos para os fins de tarde. A marca do tempo evidencia-se-lhe na curvatura da coluna que empurrando-lhe a cabeça para a frente, o faz olhar insistentemente a terra, como no apelo do fatal retorno. As pernas ainda o fazem capaz de razoáveis pedestres ousadias. Cidade onde está radicado há já cinquenta e cinco anos, Valparaíso ocupa lugar de destaque no mundo das suas afeições.
O fim de tarde de hoje mostra-se diferente para o velho Carlos que é tentado a atribuir ao por do sol, talvez ao dourado das nuvens esguias e pontiagudas que começam a escurecer o poente. Verdade é que, não sabe ele porque, o seu pensamento nesta hora voga por sítios que há muito andavam arredados no mundo das suas recordações, um daqueles longos períodos em que ele esquece as suas origens longínquas, como se fosse um natural desta cidade que o fascinou e por que se apaixonou desde a primeira vez que a viu. Mas este fim de tarde é diferente. O seu pensamento ergue-se no espaço e viaja para terras distantes. Para surpresa sua tudo lhe lembra do tempo de criança nessa aldeia longínqua desse Portugal que sabe, porque sente que mora, morou sempre no recôndito do seu coração. Lembra-se das lágrimas que chorou quando nos seus tenros doze anos, desembarcou na cidade do Rio de Janeiro, da angustia que sentiu ao encarar pessoas estranhas, que o trataram bem, onde se acolheu ainda que nas mais modestas condições mas que à partida nada ou quase nada lhe podiam dizer. Como se lembra e nesta hora sente a amargura dos rostos esmagados pela dor da despedida sem remissão de seus pais.
O sol a despedir-se nas montanhas da banda contrária ao oceano, esse sentimento que se chama saudade apodera-se de si até que os olhos se lhe humedecem, tomando consciência de que não é tão nova como isso esta experiência ou sentimento. Pensa com alguma amargura no que tem sido a sua atitude em relação à família. Se nos primeiros tempos foi assíduo nos contactos, a partir não sabe de quando como que se desligou dos do seu sangue, estranho sentimento de quem esqueceu algo que lhe devia ser sagrado. Sente remorsos nesta hora. O que será feito da minha gente, dos meus familiares, dos meus amigos? Não vai há muito tempo que num idêntico fim de tarde, no Cerro Barón onde tem a sua residência se deixou envolver por este mesmo mundo da saudade que o levou às origens. Surpreendem-no hoje estes instantes sentimentais que começam a visitá-lo com alguma frequência. Recorda os seus amigos de infância, quase na ilusão de que está a conviver com eles nessa idade. Por algum tempo tem a ilusão de que está a viver com eles as traquinices da infância. O manto da noite começa a anunciar-se sobre a cidade emoldurando os seus característicos Cerros, enquanto que no seu coração cresce a determinação há muito afastada dos seus propósitos de quanto possível num breve prazo ir de visita à sua terra. Sente que são horas de regressar a casa, mas o tempo ameno que faz permite-lhe que acalente o recém nascido sonho que toma vulto na medida em que os minutos passam e o seu pensamento vagueia pela longínqua extrema ocidental da sua Europa . Sim, habituara-se já a admitir que o tempo tudo apaga e daí que o seu mundo há muito já passara a ser o deste sul do Continente Americano. Afinal foi aqui que ele acordou para as coisas que hoje valorizam a sua vida. Foi o mundo da leitura que o tornou um homem relativamente culto e o interesse pelas coisas da arte. A pintura fascinou-o e cedo se converteu no seu ganha pão. Mas tudo isto, toda esta caminhada de vida, tem que reconhece-lo, deve-o à pessoa que para si foi preciosa, Mercedes mulher Chilena com quem veio a casar. Belíssima mulher que conciliava traços Hispano-Persa numa harmonia impregnada de exotismo, em que o sonho do regresso à sua Valparaiso era evidente. Aqui a razão de ser da vinda de Carlos Pinto da Fonseca para esta bela região da Sul-America. Na sua mente estabelece-se uma espécie de confronto entre os seus dois mundos, fazendo-lhe nascer na alma uma necessidade de escolha ou opção. A saudade da sua terra surgiu como uma telúrica erupção. Pensou nos noventa anos de que está à porta, no que isso significa em termos de realidade humana, reflectiu uma vez mais no que esta cidade tem de encantamento para si, nas circunstâncias que do Rio de Janeiro para ali o trouxeram numa idade ainda relativamente jovem, na inesquecível mulher, com quem foi um homem feliz até aos setenta anos. Depois da morte da Mercedes nunca mais deixou de se sentir acometido por uma acentuada solidão, já que do casamento não houve filhos, e aquele que adoptaram morreu tragicamente aos dezanove anos e, diga-se era objecto de uma total afeição. Não obstante estes factores e o facto daquelas duas criaturas jazerem ambas nesta cidade com o que isso para si significa em termos afectivos, deste fim de tarde resultou, surpreendentemente para si, que a balança dos seus afectos se inclinou sensivelmente para as raízes, a sua terra natal, a sua família, os seus amigos. Quando olha para o relógio é quase meia noite. Espanta-se consigo mesmo, interroga-se sobre o que se terá passado neste fim de tarde no mais fundo de si, mas o mais importante que sente ao regressar a casa no último ascensor da noite é um sonho que sente aquecer-lhe a alma. Ao abeirar-se de casa detém-se por alguns instantes, indiferente ao fresco que a esta hora faz defronte da igreja de São Francisco, por ventura a solicitar da Providência inspiração para as grandes decisões que pressente no mais fundo de si.
Não se pode dizer que tenha sido uma noite bem dormida esta. Sonhos a raiarem quase o absurdo, sem nenhuma relação aparente com o que foi a sua reflexão daquele fim de tarde, mas que depressa se desvaneceram.
O projecto de vir à terra, foi tomando forma acelerada na sua mente. Claro que se lhe colocava o problema dos custos, pois embora reconhecesse qualidade nos seus trabalhos que de resto o apaixonavam, lhe não permitiam ir além de uma vida modesta, já que também se não dispensava de uma que outra extravagância, sobretudo de visita à Buenos Aires que sempre o enfeitiçou. Uma ida à boite de Santilhena onde se esquece da idade e se deixa embalar pelos golpes de tango da juventude e as idas ao bar Olímpia, fazem parte indispensável do programa das suas visitas à capital Argentina.
Tem programada a próxima ida a essa capital no Maio que aí vem, mas por ser sempre dispendiosa e na sua cabeça está já segura a decisão da sonhada viagem transatlântica, põe de lado esse projecto na atitude de reunir economias que lhe permitam concretizar o sonho que acalenta.
Em meados de Março viaja ele no avião da Ibéria rumando sua almejada terra. Faz escala no Rio de Janeiro, onde se limita a deixar algumas saudosas lágrimas. Saudades de um tempo difícil mas que de certo por isso preenchem um recanto do seu coração. Ao anoitecer do dia dezoito de Março aterra no aeroporto de Pedras Rubras onde o espera o sobrinho Feliciano. Ao sair do aeroporto alarga os olhos numa ânsia de tudo abranger, mas que só ilusoriamente consegue. Sentir os pés poisarem numa terra que sente sua é uma experiência cara. Ao chegar a Vila Chã, o seu olhar como que mastiga recantos que lhe são familiares e que não mudaram tanto como isso. Mas a sua grande expectativa são as pessoas: o irmão, as irmãs e os amigos do seu tempo.
Já na velha casa dos seus pais e avós e depois de fazer correr os dedos da mão pela parede exterior da casa num gesto que sente mais do que humano, correndo o olhar pelos presentes, apercebe-se, como numa inesperada descoberta que para além do Feliciano e da Célia que aparentam proximidade dos setenta anos, o resto é gente jovem, sobrinhos netos e decerto bisnetos. Pergunta pelo Artur, seu único irmão e pela Deolinda e Laura, irmãs. A informação que lhe é dada petrifica-o. Todos tinham já morrido. Neste instante Carlos Pinto da Fonseca como que acorda para uma realidade que lhe devia ter sido já evidente: «pois se eles eram mais velhos do que eu e se eu tenho a idade que tenho, como é que não havia de ser natural que eles tivessem já partido». Ao colocar-se esta patética questão, os olhos humedecem-se-lhe e como que acorda nele uma rajada de lucidez em relação aquilo que é viver.
Sobretudo a memoria do Artur, mais velho três anos do que ele, sente-a fundo nos poros da alma. Era como que um criado ao serviço daquele irmão mais velho mas a quem denotava toda a amizade deste mundo. Na manhã do dia seguinte, linda manhã de primavera, como se se lhe tivesse passado uma esponja pela memória levantou-se com natural entusiasmo para ir visitar os velhos amigos do Salgueiro, do Burgo, das Casas e de Santa Eulália. Chegado ao Salgueiro pergunta a uma senhora de meia idade que não tinha já hipótese de reconhecer pelos senhores Francisco e Joaquim. A informação que recebe é desoladora. Ambos tinham morrido já há um par de anos. Pensou para consigo que os mortos começavam a ser muitos pelo que, para evitar cicatrizes mais profundas antecipou junto daquela senhora a informação complementar de que precisava: «agora diga-me minha senhora o Toninho do Burgo, o Armandinho das Casas, o senhor Doutor de Santa Eulália e o Zé do Douro ainda são vivos, não é verdade? Oh meu senhor já morreu tudo. Se o senhor é do tempo deles como parece não se iluda. Não vai encontrar ninguém. Estão todos já no mundo do Senhor». Desolado, triste, cabisbaixo, toma o caminho de casa sem qualquer tipo de objectivo na cabeça. O Feliciano notou-lhe abatimento ao almoço e depois de entender as razões do tio, sugeriu-lhe uma saltada ao Porto, admitindo que a vida da cidade o espevita-se. Assim ficou aprazado para o dia seguinte. Carlos Pinto da Fonseca não conhecia a capital do Distrito e fez questão que fossem de comboio, dizia-lhe mais. Gostou francamente da baixa da cidade, Torre dos Clérigos, a zona da Ribeira, etc.. À hora do almoço fez-se luz na cabeça de Feliciano, encaminhando o tio para a Ribeira. Na sua mente tinha o restaurante da Ponte das Barcas, um pouco caro, mas teria que ser.
A meio da refeição Feliciano chama a atenção do tio para um quadro de avantajadas dimensões e que se destacava na sala de jantar. «Sabe quem é?» - pergunta Feliciano. Carlos infirma-se no retrato que o quadro representa e vê nele feições que lhe não são estranhas, mas que não consegue identificar. Depois de um sorriso de Feliciano, que compreende a dificuldade do tio, diz-lhe com uma certa exaltação de ânimo e um brilho nos olhos: «tio, aquele senhor é, nem mais nem menos, o seu irmão Artur». «Mas a que titulo? Estás a brincar comigo?» É que o tio não chegou certamente a saber. O tio Artur veio muito novo aqui para o Porto e ele era um fura vidas e tinha muita habilidade para o desenho. Ele lá se desenvencilhou conforme pode e acabou por tirar um curso de Belas Artes. Mas bem mais importante , tornou-se um artista prestigiado nesta cidade. Só é triste que tenha morrido tão cedo, com trinta e oito anos. Por isso este restaurante que ele frequentava o distinguiu desta maneira. Acho que é novidade para o tio». Depois de uma pausa durante a qual os olhos de Carlos se detiveram no grande retrato, este comentou: - estás a dar-me uma novidade que me deixa cheio de orgulho, autenticamente esmagado. Uma novidade que me compensa da desolação de ontem, quando constatei que os meus irmãos e os meus amigos já nenhum cá está. – Ainda mal ditas estas palavras, praticamente vazia já a sala, entra um cavalheiro na aparência dos setenta anos que se detêm numa atitude de procura, até que o seu olhar se cruza naturalmente com o de Feliciano. Este sente que está a confrontar-se com alguém que lhe não é estranho. Mas aquele ligeiramente apoiado numa bengala encaminha-se decididamente na direcção de Feliciano, como quem se dirige a alguém conhecido. Pergunta-lhe se o não conhece mas ante o constrangimento de Feliciano apressa-se a dizer quem é: - sou o Silvério da Maia, pintor, que tive o privilégio de conhecer aquele homem que está ali naquela moldura e que, bom observador que sou, sei que foi seu familiar, pois recordo-me de si na homenagem que foi prestada há uns bons vinte anos ao nosso Artur da Fonseca.
Carlos Pinto da Fonseca rejubila com as palavras que ouve apressa-se a identificar-se ao recém- chegado e pelos vistos artista também da sua área com quem inicia conversa que se estende animada tarde fora. Certo é que deste diálogo resulta uma decisão importante para o Carlos: a de, pelo menos a titulo experimental, encarar nesta cidade a vida artística. A recordação de Valparaíso, que se tinha avivado com a desolação das incontáveis mortes dos homens de seu tempo, como que se aplaca e quase dilui ante dois factos importantes: a descoberta de seu irmão como pintor de mérito e de que sente incontido orgulho e naturalmente o acorda para esta cidade, que é o mesmo que dizer para a sua terra, e a expectativa lisonjeira de aqui realizar estimulante trabalho. E é com este estado de espírito, o ânimo recomposto que regressa a Vila Chã. Leva orgulho, uma vaidade com que sempre teve dificuldade em conviver, e projectos na sua cabeça que, apesar da idade, se recusa a resvalar na inactividade
Chegados a Vila Chã e enquanto o Feliciano arruma o carro, Carlos Pinto da Fonseca encaminha-se para junto do enorme penedo que a história do mundo colocou ali perto da casa dos seus pais. Penedo que sempre, desde criança – recorda-o bem – sempre o enfeitiçou. Encostando-se a ele, um lampejo portador de inesperado e profundo bem estar sentiu encher-lhe a alma. De alguma maneira sente-se ressarcido do sofrimento do dia anterior. A dignidade que tomou conta de si trazida pela memória de um irmão que passou a ser fonte de orgulho para si e a expectativa de um bom trabalho na cidade do Porto, voltam a aplacar-lhe o espírito em relação à distante e mítica Valparaíso.
Instantaneamente quando dava uma puxa no seu charuto com aparente descontracção, um sentir de felicidade que não tem medida perpassa-lhe pela mente e, como que envolto numa espécie de relâmpago, a vida de Carlos Pinto da Fonseca extingue-se.
Antonius
Nos seus quase noventa anos, Carlos Pinto da Fonseca recompõe-se da sua caminhada de todos os dias no Paseo Gervasoni, um dos seus sítios predilectos para os fins de tarde. A marca do tempo evidencia-se-lhe na curvatura da coluna que empurrando-lhe a cabeça para a frente, o faz olhar insistentemente a terra, como no apelo do fatal retorno. As pernas ainda o fazem capaz de razoáveis pedestres ousadias. Cidade onde está radicado há já cinquenta e cinco anos, Valparaíso ocupa lugar de destaque no mundo das suas afeições.
O fim de tarde de hoje mostra-se diferente para o velho Carlos que é tentado a atribuir ao por do sol, talvez ao dourado das nuvens esguias e pontiagudas que começam a escurecer o poente. Verdade é que, não sabe ele porque, o seu pensamento nesta hora voga por sítios que há muito andavam arredados no mundo das suas recordações, um daqueles longos períodos em que ele esquece as suas origens longínquas, como se fosse um natural desta cidade que o fascinou e por que se apaixonou desde a primeira vez que a viu. Mas este fim de tarde é diferente. O seu pensamento ergue-se no espaço e viaja para terras distantes. Para surpresa sua tudo lhe lembra do tempo de criança nessa aldeia longínqua desse Portugal que sabe, porque sente que mora, morou sempre no recôndito do seu coração. Lembra-se das lágrimas que chorou quando nos seus tenros doze anos, desembarcou na cidade do Rio de Janeiro, da angustia que sentiu ao encarar pessoas estranhas, que o trataram bem, onde se acolheu ainda que nas mais modestas condições mas que à partida nada ou quase nada lhe podiam dizer. Como se lembra e nesta hora sente a amargura dos rostos esmagados pela dor da despedida sem remissão de seus pais.
O sol a despedir-se nas montanhas da banda contrária ao oceano, esse sentimento que se chama saudade apodera-se de si até que os olhos se lhe humedecem, tomando consciência de que não é tão nova como isso esta experiência ou sentimento. Pensa com alguma amargura no que tem sido a sua atitude em relação à família. Se nos primeiros tempos foi assíduo nos contactos, a partir não sabe de quando como que se desligou dos do seu sangue, estranho sentimento de quem esqueceu algo que lhe devia ser sagrado. Sente remorsos nesta hora. O que será feito da minha gente, dos meus familiares, dos meus amigos? Não vai há muito tempo que num idêntico fim de tarde, no Cerro Barón onde tem a sua residência se deixou envolver por este mesmo mundo da saudade que o levou às origens. Surpreendem-no hoje estes instantes sentimentais que começam a visitá-lo com alguma frequência. Recorda os seus amigos de infância, quase na ilusão de que está a conviver com eles nessa idade. Por algum tempo tem a ilusão de que está a viver com eles as traquinices da infância. O manto da noite começa a anunciar-se sobre a cidade emoldurando os seus característicos Cerros, enquanto que no seu coração cresce a determinação há muito afastada dos seus propósitos de quanto possível num breve prazo ir de visita à sua terra. Sente que são horas de regressar a casa, mas o tempo ameno que faz permite-lhe que acalente o recém nascido sonho que toma vulto na medida em que os minutos passam e o seu pensamento vagueia pela longínqua extrema ocidental da sua Europa . Sim, habituara-se já a admitir que o tempo tudo apaga e daí que o seu mundo há muito já passara a ser o deste sul do Continente Americano. Afinal foi aqui que ele acordou para as coisas que hoje valorizam a sua vida. Foi o mundo da leitura que o tornou um homem relativamente culto e o interesse pelas coisas da arte. A pintura fascinou-o e cedo se converteu no seu ganha pão. Mas tudo isto, toda esta caminhada de vida, tem que reconhece-lo, deve-o à pessoa que para si foi preciosa, Mercedes mulher Chilena com quem veio a casar. Belíssima mulher que conciliava traços Hispano-Persa numa harmonia impregnada de exotismo, em que o sonho do regresso à sua Valparaiso era evidente. Aqui a razão de ser da vinda de Carlos Pinto da Fonseca para esta bela região da Sul-America. Na sua mente estabelece-se uma espécie de confronto entre os seus dois mundos, fazendo-lhe nascer na alma uma necessidade de escolha ou opção. A saudade da sua terra surgiu como uma telúrica erupção. Pensou nos noventa anos de que está à porta, no que isso significa em termos de realidade humana, reflectiu uma vez mais no que esta cidade tem de encantamento para si, nas circunstâncias que do Rio de Janeiro para ali o trouxeram numa idade ainda relativamente jovem, na inesquecível mulher, com quem foi um homem feliz até aos setenta anos. Depois da morte da Mercedes nunca mais deixou de se sentir acometido por uma acentuada solidão, já que do casamento não houve filhos, e aquele que adoptaram morreu tragicamente aos dezanove anos e, diga-se era objecto de uma total afeição. Não obstante estes factores e o facto daquelas duas criaturas jazerem ambas nesta cidade com o que isso para si significa em termos afectivos, deste fim de tarde resultou, surpreendentemente para si, que a balança dos seus afectos se inclinou sensivelmente para as raízes, a sua terra natal, a sua família, os seus amigos. Quando olha para o relógio é quase meia noite. Espanta-se consigo mesmo, interroga-se sobre o que se terá passado neste fim de tarde no mais fundo de si, mas o mais importante que sente ao regressar a casa no último ascensor da noite é um sonho que sente aquecer-lhe a alma. Ao abeirar-se de casa detém-se por alguns instantes, indiferente ao fresco que a esta hora faz defronte da igreja de São Francisco, por ventura a solicitar da Providência inspiração para as grandes decisões que pressente no mais fundo de si.
Não se pode dizer que tenha sido uma noite bem dormida esta. Sonhos a raiarem quase o absurdo, sem nenhuma relação aparente com o que foi a sua reflexão daquele fim de tarde, mas que depressa se desvaneceram.
O projecto de vir à terra, foi tomando forma acelerada na sua mente. Claro que se lhe colocava o problema dos custos, pois embora reconhecesse qualidade nos seus trabalhos que de resto o apaixonavam, lhe não permitiam ir além de uma vida modesta, já que também se não dispensava de uma que outra extravagância, sobretudo de visita à Buenos Aires que sempre o enfeitiçou. Uma ida à boite de Santilhena onde se esquece da idade e se deixa embalar pelos golpes de tango da juventude e as idas ao bar Olímpia, fazem parte indispensável do programa das suas visitas à capital Argentina.
Tem programada a próxima ida a essa capital no Maio que aí vem, mas por ser sempre dispendiosa e na sua cabeça está já segura a decisão da sonhada viagem transatlântica, põe de lado esse projecto na atitude de reunir economias que lhe permitam concretizar o sonho que acalenta.
Em meados de Março viaja ele no avião da Ibéria rumando sua almejada terra. Faz escala no Rio de Janeiro, onde se limita a deixar algumas saudosas lágrimas. Saudades de um tempo difícil mas que de certo por isso preenchem um recanto do seu coração. Ao anoitecer do dia dezoito de Março aterra no aeroporto de Pedras Rubras onde o espera o sobrinho Feliciano. Ao sair do aeroporto alarga os olhos numa ânsia de tudo abranger, mas que só ilusoriamente consegue. Sentir os pés poisarem numa terra que sente sua é uma experiência cara. Ao chegar a Vila Chã, o seu olhar como que mastiga recantos que lhe são familiares e que não mudaram tanto como isso. Mas a sua grande expectativa são as pessoas: o irmão, as irmãs e os amigos do seu tempo.
Já na velha casa dos seus pais e avós e depois de fazer correr os dedos da mão pela parede exterior da casa num gesto que sente mais do que humano, correndo o olhar pelos presentes, apercebe-se, como numa inesperada descoberta que para além do Feliciano e da Célia que aparentam proximidade dos setenta anos, o resto é gente jovem, sobrinhos netos e decerto bisnetos. Pergunta pelo Artur, seu único irmão e pela Deolinda e Laura, irmãs. A informação que lhe é dada petrifica-o. Todos tinham já morrido. Neste instante Carlos Pinto da Fonseca como que acorda para uma realidade que lhe devia ter sido já evidente: «pois se eles eram mais velhos do que eu e se eu tenho a idade que tenho, como é que não havia de ser natural que eles tivessem já partido». Ao colocar-se esta patética questão, os olhos humedecem-se-lhe e como que acorda nele uma rajada de lucidez em relação aquilo que é viver.
Sobretudo a memoria do Artur, mais velho três anos do que ele, sente-a fundo nos poros da alma. Era como que um criado ao serviço daquele irmão mais velho mas a quem denotava toda a amizade deste mundo. Na manhã do dia seguinte, linda manhã de primavera, como se se lhe tivesse passado uma esponja pela memória levantou-se com natural entusiasmo para ir visitar os velhos amigos do Salgueiro, do Burgo, das Casas e de Santa Eulália. Chegado ao Salgueiro pergunta a uma senhora de meia idade que não tinha já hipótese de reconhecer pelos senhores Francisco e Joaquim. A informação que recebe é desoladora. Ambos tinham morrido já há um par de anos. Pensou para consigo que os mortos começavam a ser muitos pelo que, para evitar cicatrizes mais profundas antecipou junto daquela senhora a informação complementar de que precisava: «agora diga-me minha senhora o Toninho do Burgo, o Armandinho das Casas, o senhor Doutor de Santa Eulália e o Zé do Douro ainda são vivos, não é verdade? Oh meu senhor já morreu tudo. Se o senhor é do tempo deles como parece não se iluda. Não vai encontrar ninguém. Estão todos já no mundo do Senhor». Desolado, triste, cabisbaixo, toma o caminho de casa sem qualquer tipo de objectivo na cabeça. O Feliciano notou-lhe abatimento ao almoço e depois de entender as razões do tio, sugeriu-lhe uma saltada ao Porto, admitindo que a vida da cidade o espevita-se. Assim ficou aprazado para o dia seguinte. Carlos Pinto da Fonseca não conhecia a capital do Distrito e fez questão que fossem de comboio, dizia-lhe mais. Gostou francamente da baixa da cidade, Torre dos Clérigos, a zona da Ribeira, etc.. À hora do almoço fez-se luz na cabeça de Feliciano, encaminhando o tio para a Ribeira. Na sua mente tinha o restaurante da Ponte das Barcas, um pouco caro, mas teria que ser.
A meio da refeição Feliciano chama a atenção do tio para um quadro de avantajadas dimensões e que se destacava na sala de jantar. «Sabe quem é?» - pergunta Feliciano. Carlos infirma-se no retrato que o quadro representa e vê nele feições que lhe não são estranhas, mas que não consegue identificar. Depois de um sorriso de Feliciano, que compreende a dificuldade do tio, diz-lhe com uma certa exaltação de ânimo e um brilho nos olhos: «tio, aquele senhor é, nem mais nem menos, o seu irmão Artur». «Mas a que titulo? Estás a brincar comigo?» É que o tio não chegou certamente a saber. O tio Artur veio muito novo aqui para o Porto e ele era um fura vidas e tinha muita habilidade para o desenho. Ele lá se desenvencilhou conforme pode e acabou por tirar um curso de Belas Artes. Mas bem mais importante , tornou-se um artista prestigiado nesta cidade. Só é triste que tenha morrido tão cedo, com trinta e oito anos. Por isso este restaurante que ele frequentava o distinguiu desta maneira. Acho que é novidade para o tio». Depois de uma pausa durante a qual os olhos de Carlos se detiveram no grande retrato, este comentou: - estás a dar-me uma novidade que me deixa cheio de orgulho, autenticamente esmagado. Uma novidade que me compensa da desolação de ontem, quando constatei que os meus irmãos e os meus amigos já nenhum cá está. – Ainda mal ditas estas palavras, praticamente vazia já a sala, entra um cavalheiro na aparência dos setenta anos que se detêm numa atitude de procura, até que o seu olhar se cruza naturalmente com o de Feliciano. Este sente que está a confrontar-se com alguém que lhe não é estranho. Mas aquele ligeiramente apoiado numa bengala encaminha-se decididamente na direcção de Feliciano, como quem se dirige a alguém conhecido. Pergunta-lhe se o não conhece mas ante o constrangimento de Feliciano apressa-se a dizer quem é: - sou o Silvério da Maia, pintor, que tive o privilégio de conhecer aquele homem que está ali naquela moldura e que, bom observador que sou, sei que foi seu familiar, pois recordo-me de si na homenagem que foi prestada há uns bons vinte anos ao nosso Artur da Fonseca.
Carlos Pinto da Fonseca rejubila com as palavras que ouve apressa-se a identificar-se ao recém- chegado e pelos vistos artista também da sua área com quem inicia conversa que se estende animada tarde fora. Certo é que deste diálogo resulta uma decisão importante para o Carlos: a de, pelo menos a titulo experimental, encarar nesta cidade a vida artística. A recordação de Valparaíso, que se tinha avivado com a desolação das incontáveis mortes dos homens de seu tempo, como que se aplaca e quase dilui ante dois factos importantes: a descoberta de seu irmão como pintor de mérito e de que sente incontido orgulho e naturalmente o acorda para esta cidade, que é o mesmo que dizer para a sua terra, e a expectativa lisonjeira de aqui realizar estimulante trabalho. E é com este estado de espírito, o ânimo recomposto que regressa a Vila Chã. Leva orgulho, uma vaidade com que sempre teve dificuldade em conviver, e projectos na sua cabeça que, apesar da idade, se recusa a resvalar na inactividade
Chegados a Vila Chã e enquanto o Feliciano arruma o carro, Carlos Pinto da Fonseca encaminha-se para junto do enorme penedo que a história do mundo colocou ali perto da casa dos seus pais. Penedo que sempre, desde criança – recorda-o bem – sempre o enfeitiçou. Encostando-se a ele, um lampejo portador de inesperado e profundo bem estar sentiu encher-lhe a alma. De alguma maneira sente-se ressarcido do sofrimento do dia anterior. A dignidade que tomou conta de si trazida pela memória de um irmão que passou a ser fonte de orgulho para si e a expectativa de um bom trabalho na cidade do Porto, voltam a aplacar-lhe o espírito em relação à distante e mítica Valparaíso.
Instantaneamente quando dava uma puxa no seu charuto com aparente descontracção, um sentir de felicidade que não tem medida perpassa-lhe pela mente e, como que envolto numa espécie de relâmpago, a vida de Carlos Pinto da Fonseca extingue-se.
Antonius
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