Pensamento...

A vida é uma janela que se abre no sem fim do Tempo.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

O Chileno

O CHILENO




Nos seus quase noventa anos, Carlos Pinto da Fonseca recompõe-se da sua caminhada de todos os dias no Paseo Gervasoni, um dos seus sítios predilectos para os fins de tarde. A marca do tempo evidencia-se-lhe na curvatura da coluna que empurrando-lhe a cabeça para a frente, o faz olhar insistentemente a terra, como no apelo do fatal retorno. As pernas ainda o fazem capaz de razoáveis pedestres ousadias. Cidade onde está radicado há já cinquenta e cinco anos, Valparaíso ocupa lugar de destaque no mundo das suas afeições.
O fim de tarde de hoje mostra-se diferente para o velho Carlos que é tentado a atribuir ao por do sol, talvez ao dourado das nuvens esguias e pontiagudas que começam a escurecer o poente. Verdade é que, não sabe ele porque, o seu pensamento nesta hora voga por sítios que há muito andavam arredados no mundo das suas recordações, um daqueles longos períodos em que ele esquece as suas origens longínquas, como se fosse um natural desta cidade que o fascinou e por que se apaixonou desde a primeira vez que a viu. Mas este fim de tarde é diferente. O seu pensamento ergue-se no espaço e viaja para terras distantes. Para surpresa sua tudo lhe lembra do tempo de criança nessa aldeia longínqua desse Portugal que sabe, porque sente que mora, morou sempre no recôndito do seu coração. Lembra-se das lágrimas que chorou quando nos seus tenros doze anos, desembarcou na cidade do Rio de Janeiro, da angustia que sentiu ao encarar pessoas estranhas, que o trataram bem, onde se acolheu ainda que nas mais modestas condições mas que à partida nada ou quase nada lhe podiam dizer. Como se lembra e nesta hora sente a amargura dos rostos esmagados pela dor da despedida sem remissão de seus pais.
O sol a despedir-se nas montanhas da banda contrária ao oceano, esse sentimento que se chama saudade apodera-se de si até que os olhos se lhe humedecem, tomando consciência de que não é tão nova como isso esta experiência ou sentimento. Pensa com alguma amargura no que tem sido a sua atitude em relação à família. Se nos primeiros tempos foi assíduo nos contactos, a partir não sabe de quando como que se desligou dos do seu sangue, estranho sentimento de quem esqueceu algo que lhe devia ser sagrado. Sente remorsos nesta hora. O que será feito da minha gente, dos meus familiares, dos meus amigos? Não vai há muito tempo que num idêntico fim de tarde, no Cerro Barón onde tem a sua residência se deixou envolver por este mesmo mundo da saudade que o levou às origens. Surpreendem-no hoje estes instantes sentimentais que começam a visitá-lo com alguma frequência. Recorda os seus amigos de infância, quase na ilusão de que está a conviver com eles nessa idade. Por algum tempo tem a ilusão de que está a viver com eles as traquinices da infância. O manto da noite começa a anunciar-se sobre a cidade emoldurando os seus característicos Cerros, enquanto que no seu coração cresce a determinação há muito afastada dos seus propósitos de quanto possível num breve prazo ir de visita à sua terra. Sente que são horas de regressar a casa, mas o tempo ameno que faz permite-lhe que acalente o recém nascido sonho que toma vulto na medida em que os minutos passam e o seu pensamento vagueia pela longínqua extrema ocidental da sua Europa . Sim, habituara-se já a admitir que o tempo tudo apaga e daí que o seu mundo há muito já passara a ser o deste sul do Continente Americano. Afinal foi aqui que ele acordou para as coisas que hoje valorizam a sua vida. Foi o mundo da leitura que o tornou um homem relativamente culto e o interesse pelas coisas da arte. A pintura fascinou-o e cedo se converteu no seu ganha pão. Mas tudo isto, toda esta caminhada de vida, tem que reconhece-lo, deve-o à pessoa que para si foi preciosa, Mercedes mulher Chilena com quem veio a casar. Belíssima mulher que conciliava traços Hispano-Persa numa harmonia impregnada de exotismo, em que o sonho do regresso à sua Valparaiso era evidente. Aqui a razão de ser da vinda de Carlos Pinto da Fonseca para esta bela região da Sul-America. Na sua mente estabelece-se uma espécie de confronto entre os seus dois mundos, fazendo-lhe nascer na alma uma necessidade de escolha ou opção. A saudade da sua terra surgiu como uma telúrica erupção. Pensou nos noventa anos de que está à porta, no que isso significa em termos de realidade humana, reflectiu uma vez mais no que esta cidade tem de encantamento para si, nas circunstâncias que do Rio de Janeiro para ali o trouxeram numa idade ainda relativamente jovem, na inesquecível mulher, com quem foi um homem feliz até aos setenta anos. Depois da morte da Mercedes nunca mais deixou de se sentir acometido por uma acentuada solidão, já que do casamento não houve filhos, e aquele que adoptaram morreu tragicamente aos dezanove anos e, diga-se era objecto de uma total afeição. Não obstante estes factores e o facto daquelas duas criaturas jazerem ambas nesta cidade com o que isso para si significa em termos afectivos, deste fim de tarde resultou, surpreendentemente para si, que a balança dos seus afectos se inclinou sensivelmente para as raízes, a sua terra natal, a sua família, os seus amigos. Quando olha para o relógio é quase meia noite. Espanta-se consigo mesmo, interroga-se sobre o que se terá passado neste fim de tarde no mais fundo de si, mas o mais importante que sente ao regressar a casa no último ascensor da noite é um sonho que sente aquecer-lhe a alma. Ao abeirar-se de casa detém-se por alguns instantes, indiferente ao fresco que a esta hora faz defronte da igreja de São Francisco, por ventura a solicitar da Providência inspiração para as grandes decisões que pressente no mais fundo de si.
Não se pode dizer que tenha sido uma noite bem dormida esta. Sonhos a raiarem quase o absurdo, sem nenhuma relação aparente com o que foi a sua reflexão daquele fim de tarde, mas que depressa se desvaneceram.
O projecto de vir à terra, foi tomando forma acelerada na sua mente. Claro que se lhe colocava o problema dos custos, pois embora reconhecesse qualidade nos seus trabalhos que de resto o apaixonavam, lhe não permitiam ir além de uma vida modesta, já que também se não dispensava de uma que outra extravagância, sobretudo de visita à Buenos Aires que sempre o enfeitiçou. Uma ida à boite de Santilhena onde se esquece da idade e se deixa embalar pelos golpes de tango da juventude e as idas ao bar Olímpia, fazem parte indispensável do programa das suas visitas à capital Argentina.
Tem programada a próxima ida a essa capital no Maio que aí vem, mas por ser sempre dispendiosa e na sua cabeça está já segura a decisão da sonhada viagem transatlântica, põe de lado esse projecto na atitude de reunir economias que lhe permitam concretizar o sonho que acalenta.
Em meados de Março viaja ele no avião da Ibéria rumando sua almejada terra. Faz escala no Rio de Janeiro, onde se limita a deixar algumas saudosas lágrimas. Saudades de um tempo difícil mas que de certo por isso preenchem um recanto do seu coração. Ao anoitecer do dia dezoito de Março aterra no aeroporto de Pedras Rubras onde o espera o sobrinho Feliciano. Ao sair do aeroporto alarga os olhos numa ânsia de tudo abranger, mas que só ilusoriamente consegue. Sentir os pés poisarem numa terra que sente sua é uma experiência cara. Ao chegar a Vila Chã, o seu olhar como que mastiga recantos que lhe são familiares e que não mudaram tanto como isso. Mas a sua grande expectativa são as pessoas: o irmão, as irmãs e os amigos do seu tempo.
Já na velha casa dos seus pais e avós e depois de fazer correr os dedos da mão pela parede exterior da casa num gesto que sente mais do que humano, correndo o olhar pelos presentes, apercebe-se, como numa inesperada descoberta que para além do Feliciano e da Célia que aparentam proximidade dos setenta anos, o resto é gente jovem, sobrinhos netos e decerto bisnetos. Pergunta pelo Artur, seu único irmão e pela Deolinda e Laura, irmãs. A informação que lhe é dada petrifica-o. Todos tinham já morrido. Neste instante Carlos Pinto da Fonseca como que acorda para uma realidade que lhe devia ter sido já evidente: «pois se eles eram mais velhos do que eu e se eu tenho a idade que tenho, como é que não havia de ser natural que eles tivessem já partido». Ao colocar-se esta patética questão, os olhos humedecem-se-lhe e como que acorda nele uma rajada de lucidez em relação aquilo que é viver.
Sobretudo a memoria do Artur, mais velho três anos do que ele, sente-a fundo nos poros da alma. Era como que um criado ao serviço daquele irmão mais velho mas a quem denotava toda a amizade deste mundo. Na manhã do dia seguinte, linda manhã de primavera, como se se lhe tivesse passado uma esponja pela memória levantou-se com natural entusiasmo para ir visitar os velhos amigos do Salgueiro, do Burgo, das Casas e de Santa Eulália. Chegado ao Salgueiro pergunta a uma senhora de meia idade que não tinha já hipótese de reconhecer pelos senhores Francisco e Joaquim. A informação que recebe é desoladora. Ambos tinham morrido já há um par de anos. Pensou para consigo que os mortos começavam a ser muitos pelo que, para evitar cicatrizes mais profundas antecipou junto daquela senhora a informação complementar de que precisava: «agora diga-me minha senhora o Toninho do Burgo, o Armandinho das Casas, o senhor Doutor de Santa Eulália e o Zé do Douro ainda são vivos, não é verdade? Oh meu senhor já morreu tudo. Se o senhor é do tempo deles como parece não se iluda. Não vai encontrar ninguém. Estão todos já no mundo do Senhor». Desolado, triste, cabisbaixo, toma o caminho de casa sem qualquer tipo de objectivo na cabeça. O Feliciano notou-lhe abatimento ao almoço e depois de entender as razões do tio, sugeriu-lhe uma saltada ao Porto, admitindo que a vida da cidade o espevita-se. Assim ficou aprazado para o dia seguinte. Carlos Pinto da Fonseca não conhecia a capital do Distrito e fez questão que fossem de comboio, dizia-lhe mais. Gostou francamente da baixa da cidade, Torre dos Clérigos, a zona da Ribeira, etc.. À hora do almoço fez-se luz na cabeça de Feliciano, encaminhando o tio para a Ribeira. Na sua mente tinha o restaurante da Ponte das Barcas, um pouco caro, mas teria que ser.
A meio da refeição Feliciano chama a atenção do tio para um quadro de avantajadas dimensões e que se destacava na sala de jantar. «Sabe quem é?» - pergunta Feliciano. Carlos infirma-se no retrato que o quadro representa e vê nele feições que lhe não são estranhas, mas que não consegue identificar. Depois de um sorriso de Feliciano, que compreende a dificuldade do tio, diz-lhe com uma certa exaltação de ânimo e um brilho nos olhos: «tio, aquele senhor é, nem mais nem menos, o seu irmão Artur». «Mas a que titulo? Estás a brincar comigo?» É que o tio não chegou certamente a saber. O tio Artur veio muito novo aqui para o Porto e ele era um fura vidas e tinha muita habilidade para o desenho. Ele lá se desenvencilhou conforme pode e acabou por tirar um curso de Belas Artes. Mas bem mais importante , tornou-se um artista prestigiado nesta cidade. Só é triste que tenha morrido tão cedo, com trinta e oito anos. Por isso este restaurante que ele frequentava o distinguiu desta maneira. Acho que é novidade para o tio». Depois de uma pausa durante a qual os olhos de Carlos se detiveram no grande retrato, este comentou: - estás a dar-me uma novidade que me deixa cheio de orgulho, autenticamente esmagado. Uma novidade que me compensa da desolação de ontem, quando constatei que os meus irmãos e os meus amigos já nenhum cá está. – Ainda mal ditas estas palavras, praticamente vazia já a sala, entra um cavalheiro na aparência dos setenta anos que se detêm numa atitude de procura, até que o seu olhar se cruza naturalmente com o de Feliciano. Este sente que está a confrontar-se com alguém que lhe não é estranho. Mas aquele ligeiramente apoiado numa bengala encaminha-se decididamente na direcção de Feliciano, como quem se dirige a alguém conhecido. Pergunta-lhe se o não conhece mas ante o constrangimento de Feliciano apressa-se a dizer quem é: - sou o Silvério da Maia, pintor, que tive o privilégio de conhecer aquele homem que está ali naquela moldura e que, bom observador que sou, sei que foi seu familiar, pois recordo-me de si na homenagem que foi prestada há uns bons vinte anos ao nosso Artur da Fonseca.
Carlos Pinto da Fonseca rejubila com as palavras que ouve apressa-se a identificar-se ao recém- chegado e pelos vistos artista também da sua área com quem inicia conversa que se estende animada tarde fora. Certo é que deste diálogo resulta uma decisão importante para o Carlos: a de, pelo menos a titulo experimental, encarar nesta cidade a vida artística. A recordação de Valparaíso, que se tinha avivado com a desolação das incontáveis mortes dos homens de seu tempo, como que se aplaca e quase dilui ante dois factos importantes: a descoberta de seu irmão como pintor de mérito e de que sente incontido orgulho e naturalmente o acorda para esta cidade, que é o mesmo que dizer para a sua terra, e a expectativa lisonjeira de aqui realizar estimulante trabalho. E é com este estado de espírito, o ânimo recomposto que regressa a Vila Chã. Leva orgulho, uma vaidade com que sempre teve dificuldade em conviver, e projectos na sua cabeça que, apesar da idade, se recusa a resvalar na inactividade
Chegados a Vila Chã e enquanto o Feliciano arruma o carro, Carlos Pinto da Fonseca encaminha-se para junto do enorme penedo que a história do mundo colocou ali perto da casa dos seus pais. Penedo que sempre, desde criança – recorda-o bem – sempre o enfeitiçou. Encostando-se a ele, um lampejo portador de inesperado e profundo bem estar sentiu encher-lhe a alma. De alguma maneira sente-se ressarcido do sofrimento do dia anterior. A dignidade que tomou conta de si trazida pela memória de um irmão que passou a ser fonte de orgulho para si e a expectativa de um bom trabalho na cidade do Porto, voltam a aplacar-lhe o espírito em relação à distante e mítica Valparaíso.
Instantaneamente quando dava uma puxa no seu charuto com aparente descontracção, um sentir de felicidade que não tem medida perpassa-lhe pela mente e, como que envolto numa espécie de relâmpago, a vida de Carlos Pinto da Fonseca extingue-se.

Antonius

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