DA ERA AUTOMOVEL
A alicerçar o tema que me ocorre está essa prosaica máquina de transportar pessoas que dá por «automóvel». Curioso é que na mesma medida em que sinto hoje uma espécie de cansaço (custa-me chamar-lhe repulsa) por essa máquina, não consigo esquecer o fascínio que ela exerceu já sobre mim. Nesse remoto tempo em que na nossa aldeia o nosso já então cansado carro era o único, e raras vezes na semana por lá passava um seu congénere, que punha em alvoroço a canalha (e não só), o nosso carro, apesar de objecto de trabalho que era, fascinava-me a tal ponto que hoje, decorridos sessenta anos, tenho a certeza que era capaz de o desenhar.
Pretendi neste intróito confrontar o meu encantamento de outrora com uma certa relutância que nos dias que correm me assalta.
É que naquele tempo o carro era tão só um objecto cheio de utilidade, a oferecer-nos comodidades nunca vistas, a encantar-nos com a beleza das suas linhas. Recordo um acidente nessa época em que morreu atropelado um rapaz lá para os lados de Lisboa, como guardo no subconsciente a vaga ideia de um ou outro caso de mais ou menos gravidade.
O que hoje me motiva e me desafia a divagar é aquilo em que o automóvel se converteu ao ponto de operar em mim uma profunda mudança de atitude. De objecto de deslumbramento converteu-se em mortífera máquina, factor de afirmação sem paralelo causadora de infinitos sofrimentos. De um tempo em que durante um ano aconteciam no País meia dúzia de situações mais ou menos graves, estamos caídos num outro tempo em que se morre a esmo, em que se fica estropiado para o resto dos dias, em que as estradas se converteram em autêntico cadafalso. Penso às vezes no famoso Henry Ford, no salto em frente, fantástico, que ele deu na democratização do automóvel, mas logo sinto o peso dos dramas sem conta e sem medida que essa máquina por ele desenvolvida, tem levado a cabo. Não sei se ele já deu voltas de remorso na tumba…Depois deste tipo de reflexão, fico-me sempre a pensar: não, não sou eu que vou acabar com o automóvel. Ouso prever que num futuro próximo ele deixará de ser aquela máquina destruidora, muito pessoal, e cuja velocidade depende da simples vontade do condutor.
A verdade é que se vive, estranhamente, no tempo da indiferença em relação à «matança» automóvel. Parece que ninguém tem que preocupar-se com isso. É uma fatalidade contra a qual nada há a fazer, um escandaloso cruzar de braços. Eu acho que há, que terá que haver e que vai haver neste distraído mundo alguém que, nesta matéria, dê um rumo novo às coisas. Países bem mais civilizados do que o nosso tem dado passos importantes, nomeadamente em termos de limites de velocidade. Entre nós é o aventureirismo, o desrespeito total que vingam.
E por hoje, por aqui me fico.
Antonius
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