Pensamento...

A vida é uma janela que se abre no sem fim do Tempo.

domingo, 24 de outubro de 2010

Episódio da vida real

Episódio da vida real

Para trás já um punhado imenso de tempo. Incontáveis manhãs, sempre fiel, o sol brindou-nos com a sua presença e o seu sopro vivificador. A bruma desse tempo adensa-se na voragem dos dias de modo que a imagem que guardo e nesta hora me esforço por recuperar está envolta nessa bruma que lhe retira alguma visibilidade.

Recordo que pelos meus doze anos, estava eu de joelhos junto da cama em cima da qual tinha a partitura da aula do dia seguinte. Nas mãos o bandolim e respectiva palheta que se esforçavam por fazer eco das notas postadas na pauta. Era-me evidente a dificuldade da leitura que só conseguia à custa de acentuado esforço. Não seria a incomodidade da posição que me dificultava a tarefa, mas sim a incapacidade de as grossas lentes darem resposta à minha fragilidade visual.

Não era a primeira vez que o problema se me colocava, mas desta feita senti dentro de mim impossibilidade de algum dia poder tocar lendo a pauta, por tal exigir certo distanciamento. É assim que como que acordando para uma realidade incontornável, agarro no braço do bandolim com alguma fúria e com essa fúria o atirar para cima da cama numa atitude de despedida. Batendo o bandolim com violência na cabeceira da cama rachando-se no tampo inferior deixou soltar-se uma ressonância que seria o seu ultimo suspiro. Assim morreu o sonho de algum dia tocar coisa de jeito.

O violino, que era o instrumento para que posteriormente evoluiria (a sua aprendizagem passava pelo bandolim) e que fora presente recente de um tio e ao fim e ao cabo o detonador do meu interesse pela música, lá ficou adormecido num canto do guarda fatos. Bem mais tarde, mas decerto demasiado tarde, discorri que podia ter aprendido a tocar de ouvido, que boa gente o tem feito. Mas na altura não tive essa rajada inspiradora, nem esse aconselhar inteligente. Apesar de tudo, de longe a longe, de muito longe em muito longe, lá pego no violino e sempre com uma réstia de frustração, lhe arranco uns sons não mais do que (plangentes). Quero dizer: nunca me divorciei totalmente do violino.
Nesse tempo não imaginava eu que na vizinha Espanha havia um compositor que era o autor do fabuloso Concerto de Aranjuez, mas compositor esse que era cego desde os três anos. Enfim, há sempre quem seja capaz de desbravar caminhos por pedregosos que sejam.



Antonius

1 comentário:

  1. Desconhecia os "antecedentes"... do bandolim mas pude testemunhar algumas das posteriores tentativas, na Rua das Trinas, do namoro com um violino que... chorava contigo. Belos tempos, como belo é o Concêrto de Aranjuez que aqui incluíste.
    Um abraço,
    Albano

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